Cultura

“Peça desperta identificação”, afirma ator José de Abreu

DM Redação

Publicado em 10 de setembro de 2025 às 20:02 | Atualizado há 5 horas

Caracterização: Zé de Abreu, 79, diz que ensaio durante calor intenso do Rio de Janeiro foi desafiador - Foto: Renato Mangolim
Caracterização: Zé de Abreu, 79, diz que ensaio durante calor intenso do Rio de Janeiro foi desafiador - Foto: Renato Mangolim

Meyrithania Michelly

O ator José de Abreu volta aos palcos após mais de uma década para protagonizar A Baleia, peça de Samuel D. Hunter que chega a Goiânia entre 11 e 14 de setembro, no Teatro Goiânia. A montagem, dirigida e traduzida por Luís Artur Nunes, aborda temas como reconexão, intolerância e afeto, em um enredo que já ganhou notoriedade internacional com a adaptação cinematográfica premiada em 2023. Em entrevista ao Diário da Manhã, o ator comenta a preparação para o espetáculo e reflete sobre os desafios e significados de seu retorno ao teatro. A seguir, leia a íntegra da conversa:

Ator diz que ensaios duraram três meses – Foto: Alê Catan

Diário da Manhã – O senhor interpreta um personagem que fez sucesso nos cinemas ao nos fazer pensar sobre a autodestruição pela via da comida. Como se deu sua caracterização para esse papel?

Zé de Abreu – A gente ensaiou por três meses. Já no primeiro mês, o Carlinhos, que é o figurinista, começou a trazer algumas possibilidades. Nós pesquisamos bastante, vimos vídeos de produções pelo mundo e até entrevistas de figurinistas explicando como as roupas eram feitas. Ele foi testando materiais diferentes, e eu nem sabia que existiam tantos tipos de espuma, com qualidades e texturas variadas. Depois de algumas tentativas, chegamos a um ponto interessante.

O maior problema foi ensaiar no Rio, por causa do calor intenso. Eu passava muito mal. A solução foi usar uma roupa de mergulho em neoprene, que ajuda a manter a temperatura do corpo, junto com um colete onde colocamos bolsas de gelo para não superaquecer, sem isso, seria impossível atuar. Agora, viajando com o espetáculo e pegando temperaturas mais frias, ficou mais fácil, e já nem precisamos do gelo.

No começo parecia complicado, mas deu certo: é como se eu realmente vestisse um corpo. É incrível, porque não consigo me levantar sozinho de verdade. Hoje já está mais confortável, mas o peso da roupa me ajuda a entrar no personagem. Se eu me sento em um banco ou numa cadeira de rodas, por exemplo, não consigo levantar sem ajuda de alguém, e isso reforça ainda mais a construção da cena.

“No fim das contas, a questão da roupa acabou sendo mais simples do que a própria psique humanaZé de Abreu, ator

DM – Imagino que foi necessário realizar um mergulho na psiquê humana. Qual método empregou quando recebeu o texto de Samuel D. Hunter para adaptá-lo ao teatro?

Zé de Abreu – Ah, é isso que eu digo: no fim das contas, a questão da roupa acabou sendo mais simples do que a própria psique humana. O personagem é muito mais complicado. Ele não consegue parar de comer, vive um luto mal resolvido, porque o namorado dele morre justamente por deixar de se alimentar. Então, de certa forma, ele come pelos dois. O Alan, namorado dele, se deixa morrer pedindo uma espécie de redenção.

Quando recebi o texto, não precisei fazer nenhuma adaptação para o teatro. Ele já nasceu como uma peça, escrita há cerca de 15 anos. Só depois foi vendida para Hollywood. O autor, Samuel D. Hunter, conseguiu algo raro: manter-se como roteirista da versão cinematográfica. Geralmente, em Hollywood, quando compram os direitos de uma peça ou livro, contratam seus próprios profissionais para a adaptação. Mas ele conseguiu fazer, e mesmo assim acredita que a peça é superior ao filme, porque toca o público de forma mais profunda.

Na verdade, desde a primeira ideia, Samuel deixou claro que não queria tratar a história como um tema sobre “gordura”. O que está em jogo é a culpa que a religião impõe às pessoas que saem, entre aspas, da “normalidade”. Não que sexualidade seja algo anormal, muito pelo contrário, mas sim que foge aos parâmetros rígidos do que certas religiões entendem como uma vida “correta”.

Ator afirma que peça traz mensagem de humanidade e fé no ser humano – Foto: Alê Catan

DM – Com traumas que envolvem religião e perda de um grande amor, o personagem quer se aproximar da filha. O que esse papel te ensinou sobre a natureza humana? 

Zé de Abreu – O que acontece é que eles se apaixonam de uma forma intensa. Ele é professor, e o Alan, aluno, apenas dois anos mais novo. Eles começam a se encontrar nas aulas e vivem uma paixão, mas o professor é casado e tem uma filha. Já o Alan é filho de um bispo, que retorna de uma missão na Suíça e, ao chegar, logo arruma uma jovem da igreja para ele se casar. Essa paixão entre os dois, numa cidade pequena e extremamente conservadora, causa um verdadeiro terremoto.

A esposa do professor consegue a guarda total da filha, impedindo que ele se aproxime. Já o Alan, pressionado pelo pai, é levado à igreja para um suposto processo de “cura gay”, algo que nunca fica totalmente claro. O fato é que ele volta para casa vazio, e acaba tirando a própria vida.

Apesar do peso do enredo, a peça desperta identificação. Muita gente que nos procura depois das apresentações ou escreve críticas destaca como a história toca no humano. O público sai emocionado, muitos choram, mas não é um choro de desespero. Saem bem, porque, mesmo tratando de questões sérias, a peça traz uma mensagem de humanidade e uma fé no ser humano.

“Conciliar novela e teatro já é muito difícil. A novela mudou muito, está mais corrida, o tempo é diferente”José de Abreu, ator

DM – O Sr. se afastou dos palcos na última década. Por que tomou tal decisão

Zé de Abreu – Uma coisa que eu sempre quis era morar fora do Brasil. Quando completei 50 anos de carreira, já com quase 70 de idade, senti vontade de viver em um lugar onde ninguém me conhecesse, sabe? Ter uma vida normal. Dizem que no Rio ninguém pede foto, mas não é bem assim. Além disso, o Rio é uma cidade turística, então sempre tinha gente pedindo. Eu queria viver de forma mais comum, andar na rua sem ser parado o tempo todo.

Por coincidência, acabei morando em vários lugares: França, Grécia, Nova Zelândia e até um período em Los Angeles. Durante esse tempo, eu só voltava ao Brasil para gravar novelas na Globo. Ficava o verão aqui e depois ia embora. Foi um período de uns oito anos, até que, há dois anos, decidi ficar direto no Brasil.

Esses anos foram muito interessantes. No começo, fui três vezes para Paris, mas sempre acabava precisando voltar para o Brasil para gravar novela. Então, quando eu ia, era inverno na Europa. E Paris no inverno é complicado: não neva muito, mas faz frio e chove quase todos os dias. Essa combinação é bem desagradável.

“A Baleia” traz texto emocionante em que é debatido inclusão e gordofobia – Foto: Divulgação

Na quarta vez, resolvi ir para a Grécia. E foi outra experiência: sol, 16 graus, uma atmosfera completamente diferente. Foi lá que escrevi minha autobiografia, quase 900 páginas divididas em dois volumes, chamada Abreugrafia, disponível na Amazon. Passei duas temporadas na Grécia e uma em Lisboa, quando fiquei uns oito meses sem gravar novela e aproveitei para fazer uma série em Portugal.

Esse período fora foi justamente o que me impediu de fazer teatro. Porque, mesmo hoje, conciliar novela e teatro já é muito difícil. A novela mudou muito, está mais corrida, o tempo é diferente. Basicamente, eu só poderia me dedicar ao teatro se estivesse completamente fora da televisão.


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