Cachaça ajudou a moldar brasilidade ao impactar artes
DM Redação
Publicado em 11 de setembro de 2025 às 20:07 | Atualizado há 5 horas
Marcus Vinícius Beck
Caríssimos amigos & leitores, pretendia nem molhar a palavra. Valha-me Dia da Cachaça (amanhã), viver é giz no taco, bola na caçapa e dois dedinhos, ou três, daquela branquinha.
Seguremos o cálice, ergamo-lo, levemo-lo à boca e engulamos a temida: “Ave Maria!” Façamos caretas. Cálice já na mesa, cabeça revirada. Língua dançando, beiço incendiando.
Vosso juízo tropeça no meio-fio da caninha, afoga-se nos dedinhos da bagaceira, equilibra-se donde os bêbados ficam em pé. Bota outra, por obséquio, seu Morwan. Alambicamos a vida.
Vixe. Pareço um certo Quincas, aquele teu Quincas, amigo Jorge Amado. O homem, ao ver-se diante de uma garrafa, uma inofensiva botella transparente depositada à sua frente, proclamou: “Áááááguuuuua.” Imortalizou-se, esse bebum. Nosso Quincas Berro D’Água.
Bom de prosa

O fato é que Amado, tipo bom de prosa, gostava de servir um trago de cachacinha para embriagar o verbo na literatura brasileira. No romance “Capitães de Areia”, o personagem João Grande não dava conta de passar cinco páginas sem deixar-se levar por uma caninha.
Jorge Amado, sopra-me o querido Xico Sá no cocuruto cachaceiro, é o autor com o maior número de personagens bêbados do mundo. “Ganha até dos russos”, informa o cronista.
Canalha, raparigueiro, Vadinho derretia o coração do mulherio. Só ia para casa — cabra safado da peste — quando fechava a última bodega soteropolitana, para nos atermos ao Pelourinho. José Wilker deu conta dele certinho em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.
Como não era nada besta, o herói se engraçou pelo corpo quente de Dona Flor. Minha memória rebobina a fita dirigida por Bruno Barreto em 1976: Sonia Braga, gatíssima, apaixonou-se tanto pelo cachaceiro quanto pelo sujeito idôneo — o doutor Teodoro.
Conhaque pros valetes, tinto pras damas e cachaça pros pobres, como canta Fred Zero Quatro, cujo Mundo Livre S/A escuto ao fundo, alternando com Aldir Blanc, óbvio. “Deus nos dê fígado, pois temos o planeta inteiro pela frente”, diz o verborrágico mangueboy.

Tem sonho cinematográfico, sonho filmado por Cláudio Assis em “Amarelo Manga”, estética mangue, manguetown, caos urbano. De repente, a deslumbrante Leona Cavalli aparece no telão fílmico instalado na cachola deste cronista do cotidiano: Lígia, bela e cansada.
Qual o quadro “A Origem do Mundo”, do pintor Gustave Courbet, a personagem se oferece à câmera: dona de bar, rainha do balcão. Machões lhe tecem cantadas. Rega uma fauna de cachaceiros no bioma etílico. Deixa-se filmar: mata pubiana, relva fresca, aragem natural.
Desce outra, por favor, seu Morwan. Careço daquela chibatada no discernimento, pode ser com caju ou limão, tá? Ou aquela pra rasgar. O mundo ganha da gente, de um a zero, dois a zero, três a zero, como leio meu guru Paulo Mendes Campos: “Bar é um objeto que se gasta.”
O cálice. Vida noturna ao estilo Blanc, esse cronista que seguia com a mão no bolso e sorria. Vida noturna à moda João Bosco, esse violonista dos retratos da nossa doce hipocrisia. O cálice. Finalmente esvaziado, drenado na goela, leite de onça forrando o peito. Arre!
Vou-me adiante no etilismo do Setor Sul. Enquanto proseio, entre “ave maria” e “arre”, o personagem Malagueta vem-me à cachola. “A tacada final era dolorosa e era invariável — era a minha — e eu me perdia”, diz o narrador do livro “Malagueta, Perus e Bacanaço”.

Tacos e letras
Eis a grande dúvida do jogo, da vida. Eis, meus amigos, o ídolo João Antônio: que prazer que é lê-lo. É conto, prosa urbana, relato pessoal, reflexão ensaística, perfil. Carne Frita, a lenda da sinuca, calibra o taco nas letras e na tela — em filme de Maurice Capovilla.
Por pouco, cê pira?, não proibiram a temida. O ex-deputado Paulo de Abreu apresentou projeto que previa, uai!, acabar com a cachaça. Sugeria banir, em todo o território nacional, a fabricação, o transporte, a venda, a compra e, pasmem!, o uso da dita-cuja.
“Se querem aprovar a lei, aprovem. Mas eu proponho, pelo menos, uma pequenina emenda, apenas para defender a economia do país e a dignidade de sua gente: onde está escrito ‘cachaça’ leia-se ‘coca-cola’. Promulgue-se”, apregoou o cronista Rubem Braga, em 1951.
Peço a saideira, minha nossa senhora!, em uma tabelinha imaginária com Lima Barreto: “O que prejudica nossos literatos não é a cachaça. É a burrice.” No mais, caríssimos amigos & leitores, não nos avexemos: vai haver ressaca, dor de cabeça. Bebamos com moderação.