Cultura

Fernanda Marra lança livro de contos na Palavrear

DM Redação

Publicado em 22 de setembro de 2025 às 19:31 | Atualizado há 59 minutos

Autora partiu de suas marcas para definir perspectivas que abordaria em cada história - Foto: Rafaella Pessoa
Autora partiu de suas marcas para definir perspectivas que abordaria em cada história - Foto: Rafaella Pessoa

Marcus Vinícius Beck

Na obra “As Tias”, que a escritora e psicanalista Fernanda Marra lança na Palavrear, nesta terça (23/09), a partir das 18h, a narradora confessa: “Nunca chamei minhas tias de tias.” Dirigia-se a elas pelo nome próprio. Tias, dizia, eram as tias do seu pai, as tias-avós e amigas da sua mãe.

Como na escrita de Clarice Lispector (1920–1977), a vergonha lhe tomava conta ao pensar em chamar uma tia de tia. Era um mistério? Talvez. Era um muro comunicacional? Parece. Se a família a visitava, então criava-se, simultaneamente, algo entre alegria e constrangimento.

Nem pensar em ficar cara a cara: coisa pavorosa. Que sensação paralisante chamá-los de tio, tia. Faltaria-lhe intimidade? É quase certo. Saiu cedo de perto dos parentes para ir morar com seu núcleo familiar noutro estado. Não houve aquele afeto infantil, adolescente.

O percurso analítico lhe sugere que há algo mais. “Faz supor que essa inibição paralisante ao pronunciar aqueles vocativos como se dissesse uma obscenidade vai referida a uma espécie de sintoma, algo da ordem do que não quero saber e insisto em sondar”, reitera a narradora.

Fernanda Marra: “É o que consegui fazer com aquilo de que não posso fugir” – Foto: Rafaella Pessoa

Para o filósofo Walter Benjamin (1892–1940), no ensaio “A Imagem de Proust”, o relevante para o autor que rememora não é o que ele viveu, mas “o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência”. Benjamin diz que um episódio vivido é finito.

“Ou pelo menos se encerra na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois”, explica, num texto em que analisa a importância da memória para a obra do escritor Marcel Proust.

Marra – voltemos a ela, suas tias e seus contos – possui o título de mestre em Letras e Linguística pela UFG. Em 2021, tornou-se doutora em Teoria Literária pela UnB, com a tese “A Mulher-Árvore que Uiva, Arde e Erra: Uma Escuta da Poética de Alejandra Pizarnik”.

Na poesia, publicou os livros “taipografia” (martelo casa editorial, 2019) e “furonofluxo” (Telaranha Edições, 2023). Tem poemas e contos em revistas e antologias, fato que lhe confere maturação estilística – espécie de lipoaspiração a que todo escritor se submete.

Veja, por exemplo, este trecho: “Sinto o corpo formigar, cambaleio, e é só com o corte estridente da voz dela, no pé do meu ouvido, que percebo meus dentes enterrados em seu braço.” Prosa desengordurada, bela e emocionante, afiada, como uma antologia de vidas.

Capa do livro ‘As Tias’, editado pela Telaranha – Foto: Divulgação

Ainda no conto “As Tias”, a infância se manifesta na personagem Marina, cuja “testa aberta no balanço de ferro, toda ensanguentada e cambaleando na nossa direção até desmaiar no pé de Bia foi ontem”. Depois, o leitor saboreia o perfume da carne na panela cheirando longe.

Tia Cida, então, lembra da “nossa velhinha”. O eu narrador deixa-se embalar por um drinque de seriguela madura. “Até o gosto ruim do leite adoçado com açúcar e um sujinho de Nescau nas canecas de plástico parece um moto-contínuo na minha cabeça”, rememora.

Na sequência, como quem vasculha afetos antigos, evoca em diálogo interior as recordações trazidas pela música popular brasileira. “Você ainda acha que o ‘Mais’ é o álbum definitivo da Marisa Monte? É verdade, depois teve o ‘Cor-de-Rosa e Carvão’, aquela obra-prima.”

“As Tias”, como se vê, destaca-se pelas mulheres que ali habitam, num equilíbrio primoroso entre uma escrita concisa, sonora, que se desnuda diante do leitor pelo diálogo com a tradição da literatura – sobretudo a citada Clarice Lispector e o sagaz Machado de Assis.

Escritora e psicanalista demonstra coragem com texto sem gorduras – Foto: Rafaella Pessoa

Conflitos

Ao longo de 13 contos, uma série de conflitos se desenrola: a vida interiorana e a metrópole, as relações familiares e o convívio entre vizinhos, as desigualdades socioeconômicas. De acordo com o literário Fabio Weintraub, o livro de Marra apresenta corpos despedaçados.

Weintraub, assim, sublinha o eixo temático. A obra mostra, segundo ele, “a violência contra as mulheres, crianças e idosos; a vida interiorana, rural e periférica; tortura e assassinato; sobrenaturalidade (associada, por exemplo, a saberes ancestrais de origem afro-indígena)”.

Antenada ao contemporâneo, Marra volta-se à tradição. “A grande questão na escrita das histórias de ‘As Tias’ foi que parti das minhas marcas (reminiscências, lembranças, obsessões) e fui definindo as perspectivas pelas quais queria abordar cada história”, afirma.

A escritora declara, no entanto, que não se trata de autoficção (gênero da moda), “mas com o que entendo ser a maior graça da escrita: emprestar a matéria-prima da nossa ‘experiência’ para um projeto estético que só alcança os outros porque porta essa verdade”.

Entre o particular e o humano, Marra elucida: “É o que consegui fazer com aquilo de que não posso fugir.” Na Palavrear, haverá bate-papo com Eugênia Fraietta, professora de literatura, e Rosângela Chaves, jornalista. Fernanda Marra escreve com coragem.


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia