Cultura

Mussolini quebra quarta parede e fala com quem o assiste

DM Redação

Publicado em 22 de setembro de 2025 às 19:38 | Atualizado há 3 horas

Ator italiano Luca Marinelli emerge como Benito Mussolini em “O Filho do Século” - Foto: Andrea Pirrello/Divulgação
Ator italiano Luca Marinelli emerge como Benito Mussolini em “O Filho do Século” - Foto: Andrea Pirrello/Divulgação

Alessandra Monterastelli

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Centenas de homens vestidos de preto, muitos abatidos pela Primeira Guerra, outros enraivecidos, bradam a cada palavra de Benito Mussolini. “Aqui está o meu povo perdido, carente de homens fortes e ideias simples”, diz o ditador, na pele do ator italiano Luca Marinelli.

A cena, da série “M – O Filho do Século”, pode causar um déjà-vu perturbador para quem acompanha as notícias internacionais. No ano passado, homens com o mesmo figurino marcharam em Roma e apontaram seus braços para frente em saudação fascista.

O episódio mostra como o lançamento da série pela Mubi acontece em um momento curioso, em que grupos neofascistas e supremacistas voltam a se manifestar pelo mundo, enquanto líderes de ultradireita chegam à presidência de seus países -como é o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Giorgia Meloni, a primeira-ministra da Itália.

“M – O Filho do Século” adapta o livro homônimo de Antonio Scurati, publicado no Brasil pela Intrínseca. A obra é uma espécie de biografia que conta como Mussolini chegou ao poder na Itália de 1922 e fundou o partido fascista. Narrado como ficção e fiel a documentos históricos -estilo definido pelo autor como “romance-documentário”-, o livro é um best-seller internacional.

É o paralelo com o presente, diz Scurati, que impulsiona a popularidade da obra. “Mussolini não é apenas o fundador do fascismo, mas também o primeiro líder populista da história contemporânea”, afirma ele, em entrevista. “Mussolini era, em muitos aspectos, o arquétipo de todos os líderes populistas subsequentes do século, incluindo os de hoje.”

Joe Wright foi escolhido para dirigir a adaptação, que começa quando Mussolini comandava o jornal Popolo D’Italia e já liderava, antes de ser ditador, os camisas negras, grupos paramilitares fascistas responsáveis por massacres de nas cidades e no campo.

Para replicar o estilo do livro, que usa cartas e artigos de jornais, a série mistura a trama histórica com flashbacks granulados em branco e preto que parecem gravações do começo do século passado. Elas mostram, por exemplo, a expulsão de Mussolini do Partido Socialista por traição, após sua defesa da permanência da Itália na Primeira Guerra.

“A ideia era criar um conflito entre a distância crítica e a empatia. Existem momentos em que o público pode ser seduzido por Mussolini, para depois ser obrigado a questionar essa sedução”, diz Wright, um cacique de filmes de época. Suas obras “O Destino de uma Nação”, sobre Winston Churchill, “Anna Karenina” e “Orgulho e Preconceito”, adaptações de clássicos literários, acumulam algumas estatuetas do Oscar.

Para fazer “M – O Filho do Século”, ele pediu à dupla de música eletrônica Chemical Brothers uma trilha metálica, aceno aos poetas futuristas que aderiram ao fascismo. A música impulsiona cenas brutais, como a que os camisas negras invadem o jornal socialista Avanti, queimam sua sede e esfaqueiam os jornalistas. Ou quando espancam um sindicalista na frente das filhas até a morte. A estética da série é obscuramente atraente, com cenários de alto contraste que variam de palácios com estátuas renascentistas a becos decrépitos do pós-guerra.

Há momentos em que Mussolini quebra a quarta parede e fala com quem assiste. O recurso permite identificar com precisão como ele manipula as situações em benefício próprio, comportamento impulsionado por certo narcisismo -traço evidente nas relações com mulheres. Apesar de desprezá-las, ele as mantinha perto para sexo e ideias, no caso da amante intelectual, ou para cuidar dos filhos, no caso da esposa.

“Foi importante excluir adjetivos inúteis, como monstro, louco ou idiota. Infelizmente ele era um homem que veio da nossa sociedade. Era um humano que escolheu ser criminal”, diz Marinelli. Seu Mussolini é teatral, quase bufo, não fosse a brutalidade. O ator se emocionou quando um episódio foi exibido em Roma e, na plateia, a maioria eram jovens. “Como italiano, foi importante passar essa pequena mensagem antifascista. Nós temos uma tendência de esquecer as coisas.”

O tom antifascista, porém, foi refutado por serviços de streamings americanos, diz Wright. “Estávamos procurando distribuição nos Estados Unidos, e um dos maiores streamings do mundo nos disse que amaram a série, mas que era muito controversa para eles. O antifascismo hoje ser chamado de controverso é chocante”, acrescenta o diretor.

Destrinchar as origens do fascismo vem causando problemas também para Antonio Scurati. No ano passado, ele disse ser tratado como um “cão tinhoso” pelo governo de Giorgia Meloni, com direito a uma campanha de insultos por parte de seus apoiadores.

Ele faria um discurso na TV aberta em 25 de abril, dia da libertação italiana do nazifascismo, mas a fala foi cancelada pela Rai, a maior emissora do país, que alegou “motivações editoriais”. Mas dias antes Meloni tinha defendido o cancelamento.

“A censura já está em curso de várias formas, tanto veladas quanto abertas”, diz Scurati. O caso se soma às tentativas de Donald Trump de controlar o setor cultural americano, com interferência em museus e em estúdios -o episódio mais recente dessa saga levou ao cancelamento do “The Late Show”, apresentado por Stephen Colbert, conhecido por ser crítico ao republicano.

Um século depois da ascensão de Mussolini, no desespero após a Primeira Guerra, hoje nos encontramos novamente um período propício para que muitos se sintam “carentes de homens fortes e ideias simples”, afirma Bianchi. “Vivemos a radicalização de uma crise econômica que se estende desde 2008, com efeitos políticos intensos”, ele acrescenta.

Para Scurati, se as diferenças entre o fascismo de Mussolini e os partidos de ultraditeira hoje são numerosas, também existem semelhanças. “Em ambos os casos, os paralelos entre a crise da democracia na década de 1920 e a atual são evidentes”, afirma. Além da censura, Bianchi aponta que o partido de Meloni, Fratelli D’Italia, é um descendente direto do antigo Movimento Social Italiano, partido neofascista formado depois da Segunda Guerra.

M – O FILHO DO SÉCULO

Onde Disponível na Mubi

Classificação 16 anos

Elenco Com Luca Marinelli, Barbara Chichiarelli e Francesco Russo

Produção Estados Unidos, Itália, 2025

Direção Joe Wright


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