‘Malês’ recupera o cinema novo e entrelaça passado e presente
DM Redação
Publicado em 30 de setembro de 2025 às 19:52 | Atualizado há 3 horas
Inácio Araujo
FOLHAPRESS – Em “Malês” existe uma espécie de eco do cinema novo, do qual Antonio Pitanga participou como ator em várias ocasiões. Claro que não estamos no cinema novo, mas o desejo de mostrar algo até hoje ignorado no Brasil e na história do Brasil está presente. Trata-se de uma revolta ocorrida na Bahia, século 19, que envolve desde a existência de escravizados de religião muçulmana até o fato de eles serem alfabetizados.
Claro, isso remete ao desejo cinemanovista de trazer ao cinema um Brasil desconhecido e, no caso, é possível supor, bem escondido. Essa conexão aparece no discurso das personagens masculinas com frequência: há um inconformismo com sua condição que se revela tanto no desejo de construção de uma mesquita quanto no desejo de se libertar o maior número de escravizados possível mediante compra.
Nesse meio, fermenta a revolta sutilmente, o que se manifesta no falar desses homens que têm, aliás, uma dicção interessantíssima.
Fiquemos, por ora, com a mesquita: ela encerra o desejo de transmitir ensinamentos não só religiosos aos escravizados. Ensinamentos podem ser subversivos. No caso de “viventes”, vistos como pouco mais do que objetos, o conhecimento é pólvora —quer os conjurados o admitam ou não.
A ação que se desenrola é didática, mas não como princípio: não se trata de mostrar às pessoas como agir, mas de buscar reconstituir o princípio da rebeldia —causas e consequências.
No mais, é preciso dizer que Pitanga faz um filme sobre o escravagismo e consegue fugir das muitas armadilhas que um trabalho dessa natureza sugere. Apenas como exemplo, é preciso notar as mulheres brancas da história. Elas não precisam bater, gritar, nada disso, para infundirem terror. A proprietária de terras, tanto quanto a freira, basta que olhem para as pessoas para sabermos exatamente como os negros de hoje sentem o olhar do homem branco.
Há na fazendeira, papel de Patrícia Pillar, um misto de desprezo e ódio pelo outro que dispensa demonstrações de força. Basta que leve o chicote: a força já está lá e equivale à dominação absoluta. Basta vê-la, com a ameaça implícita que marca seus olhares e gestos, para entendermos do que se trata.
Há na freira de Ítala Nandi o desejo de ensinar as belezas do cristianismo às jovens negras que pressupõe serem ignorantes por princípio —não conhecem o verdadeiro Deus, essas coisas—, e, no limite, desprezíveis. A representação das mulheres brancas é um dos pontos fortes do filme, mas não o único. Há as negras, que pouco falam, mas pensam.
A representação da revolta dos malês pelo filme tem muito a ver com o fundo histórico com que o Brasil convive até hoje, naturalmente, mas nisso o que mais afeta a realização, o que a motiva, é o esquecimento —desse episódio histórico, para começar.

Tem a ver também com a capacidade de evocar nosso passado angustiante e entrelaçá-lo ao presente que nos assombra, do qual é parte indissociável a naturalização da violência contra os negros —e pobres em geral— no país. É disso que trata “Malês”, no fim das contas.
Pitanga expõe a ação com a mesma clareza que maneja seus argumentos. Pesa ali a data, 1835, um momento que precede em anos as primeiras legislações que anunciavam a condenação final do escravismo. Não se tratava, pode-se acreditar, de uma revolta capaz de chegar à vitória, mas de um signo que dava a ver a situação insuportável que viviam. Talvez por isso mesmo ela tenha ficado tanto tempo ignorada: o Brasil sabe cantar suas belezas, mas sabe como poucos esconder suas vergonhas.
Num filme que vale pela produção bem ajustada, pela bela luz, pelo elenco muito eficiente e equilibrado —do qual impossível não notar o trabalho de Rodrigo dos Santos—, pela capacidade de Pitanga de esquivar-se das armadilhas do gênero, não há como assinalar a intromissão de uma longa cena amorosa entre Dassalu, papel de Rocco Pitanga, e Abayme, vivida por Samira Carvalho. Entende-se a provável intenção de notar o amor —carnal e não carnal— entre as personagens, mas a cena destoa do conjunto do filme e das aflições das personagens, sempre ameaçadas de serem separadas.
MALÊS
Estreia: quinta-feira, 2
Classificação: 16 anos
Produção: Brasil, 2025
Direção: Antonio Pitanga