Cultura

Exclusivo: Rei do bolero vive recluso em Goiânia

DM Redação

Publicado em 3 de outubro de 2025 às 19:13 | Atualizado há 28 minutos

Artista revê relevância do brega para a música brasileira no filme “Vou Rifar Meu Coração”, de Ana Rieper - Foto: Divulgação
Artista revê relevância do brega para a música brasileira no filme “Vou Rifar Meu Coração”, de Ana Rieper - Foto: Divulgação

Marcus Vinícius Beck

Diagnosticado com Parkinson e tendo a saúde fragilizada desde a década passada, o cantor goiano Lindomar Castilho, 85, vive recluso em seu apartamento, em Goiânia. O rei do bolero não dá entrevistas, dispensa convites para shows e mora sozinho. As duas filhas o amparam.

Lindomar largou a carreira por volta de 2005, quando pôs nas lojas seu último disco por uma gravadora independente do Recife. Antes disso, foi contratado da Sony, lançando um álbum ao vivo. Era um revival puxado pelo sucesso da série “Os Normais”, da TV Globo.

A música “Você é Doida Demais” abria a comédia que retratava o cotidiano do casal Rui e Vani, vividos pelos atores Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres. Nas noites de sexta-feira, o público brasileiro se habituou a entoar o refrão enquanto ria assistindo às peripécias da dupla protagonista. O programa global ficou no ar entre 2001 e 2003. 

Dono de voz dramática, carregada da intensidade típica do bolero, o cantor, natural de Santa Helena de Goiás, está cansado. Encheu-se da indústria musical, ainda que tivesse boa agenda de shows no Brasil e exterior. Fartou-se da imprensa e da busca por seu passado.

No dia 30 de março de 1981, Lindomar, então artista de sucesso na música latina, disparou cinco tiros contra a ex-esposa Eliane de Grammont, de 26 anos, mãe de uma de suas filhas. Ela se apresentava na boate Belle Époque, em São Paulo, com o violonista Carlos Randall. 

Para o filósofo Wander Segundo, integrante das bandas Corja e Os Canalhas, a tragédia cometida pelo seu tio-avô marcou negativamente a carreira dele. “Acabou se tornando um dos maiores marcos do movimento feminista no Brasil”, diz Segundo ao Diário da Manhã

Em agosto daquele ano, poucos meses após o crime, Lindomar veio a Goiânia para fazer um show no ginásio Rio Vermelho. O Cevam, na ocasião, distribuiu panfletos nos quais se lia: “Lindomar Castilho vai cantar, mas Eliane de Grammont não vai, porque ela está morta.”

Segundo a jornalista e escritora Carla Monteiro, diretora do Cevam, a iniciativa tomou grandes proporções. “Lindomar Castilho acabou não cantando. Disseram para ele que o Cevam estava lá fora. Ele ficou com medo de ser agredido”, declarou Carla em 2020. 

Discos de Lindomar se tornaram populares na América Latina – Foto: Acervo Pessoal

Lindomar foi julgado em 1984, de acordo com o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). “Mesmo após todos esses anos desde o cumprimento de sua pena, ele ainda precisa ser moralmente perdoado e, muitas vezes, é difícil para muitas pessoas separar o artista da obra”, avalia Segundo, que conviveu com o tio-avô durante boa parte da vida.

Depois da prisão, o cantor visitava o sobrinho-neto. “Gravava demos só com o violão, com as músicas novas que fazia”, conta, revelando que Lindomar chegou a fazer uma versão em português para “Volver a Los 17”, de Mercedes Sosa. “Minha mãe o ajudou a fazer a letra. Por algum motivo contratual, nunca foi lançada. Cantava em todas as festas de família.”

Ao ver que o sobrinho formava suas bandas, o cantor o aconselhava. Dava-lhe dicas de como tocar, lidar com o mercado musical e gravar em estúdio. “Isso me ajudou bastante a montar o Corja e Os Canalhas e também com a Two Beer or Not Two Beers”, reconhece o roqueiro. 

Sucesso lá fora

Um pouco de sua visão crítica às gravadoras e ao mainstream veio da convivência com Lindomar. “Achava esquisito o som do Corja por ser pesado, mas tinha simpatia pela proposta d´Os Canalhas, que fazia versões pesadas de canções brega, antes do João Gordo.” 

Apesar de todos os pesares, pontua Segundo, o Lindomar Castilho que conheceu era “uma pessoa generosa” que o incentivou a tocar, produzir eventos e até a montar um selo independente, mesmo que não entendesse a proposta antimídia do rock underground.

Filho caçula da bisavó de Segundo, Lindomar Castilho foi um ícone na América Latina. Tocou e gravou com Miguel Aceves Mejia, Violeta Parra, Victor Jara e Mercedes Sosa. Recebeu o apelido “El Novio de las Américas” e possui extensa discografia no México e nos Estados Unidos. O disco “Alma Latina”, gravado com Carmen Silva, é um clássico.

Até hoje, diz o filósofo, as listas do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), que registram a arrecadação de royalties das músicas, mostram Lindomar nas rádios de toda a América — do Norte, Central e Sul. Ou seja, o artista segue fazendo sucesso no continente.

“Era um ícone do bolero lá fora e tratado como brega pejorativamente no Brasil, mas cantava bolero, guarânia, até música italiana. Sempre cantou diversos ritmos”, aponta Segundo, filho do ex-deputado Wander Arantes, que cuidou da carreira de Lindomar até morrer, em 2021. 

O filho do povo: Lindomar virou personagem inconteste da música popular brasileira – Foto: Acervo Pessoal

Segundo ressalta que a maior contribuição do seu tio-avô foi a aproximação do Brasil com toda a América Latina. “Ele não era apenas um cantor brasileiro lançado no mercado latino-americano, como a maioria. Ele realmente se comunicava com o público latino. Fazia essa parte da identidade da América do Sul, sem deixar de ser brasileiro”, afirma. 

Nascido em 1940, no povoado Ipeguary, Lindomar trazia ritmos que não eram conhecidos. Caiu, por isso, no gosto do público e, além disso, sua voz se tornou inconfundível. Foi, ainda, influente para a música sertaneja raiz e para sua vertente urbana dos anos 1990. 

“De Leandro e Leonardo a Joanna, diversas duplas fizeram releituras dele”, relata Wander Segundo, lembrando de sua importância para o gospel. “Apesar de Lindomar não ter se associado a nenhuma igreja, essas músicas se tornaram referência para esses artistas justamente por terem uma pegada mais popular do que os tradicionais hinos das igrejas.”

Embora seja inegável a relevância de Lindomar para a música latina, as elites torcem até hoje o nariz para sua discografia. “Uma parte do Brasil sempre foi elitista e está associada aos intelectuais e formadores de opinião. Você pode ver muito dessa história no livro ‘Eu Não Sou Cachorro, Não — Música Cafona e Ditadura’, do Paulo César Araújo”, diz Segundo. 

Lindomar é entrevistado tanto no livro quanto no documentário “Vou Rifar Meu Coração”, dirigido pela cineasta Ana Rieper e lançado em 2008. São obras que reavaliam o legado do cantor goiano. Goste-se ou não, ele é um personagem inconteste na música brasileira.


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