Cultura

Em ‘Da Lata’, Fernanda Abreu retrata sociedade a partir do suingue

DM Redação

Publicado em 7 de outubro de 2025 às 20:23 | Atualizado há 4 horas

Fernanda Abreu: diva do pop brasileiro - Foto: Mateus Rubim
Fernanda Abreu: diva do pop brasileiro - Foto: Mateus Rubim

Marcus Vinícius Beck

Na sexta faixa, o disco “Da Lata” traz a cantora Fernanda Abreu recitando o suingue brasileiro. Para ela, temos sangue carnavalesco. Fernanda aconselha: “Deixa solta essa bundinha, deixa solto esse quadril. Vamo lá, rapaziada. Todo mundo pulando. Vamo lá, rapaziada.”

O corpo não deve ser submetido à ditadura da cabeça pensante. Dançando, debate-se a conjuntura sociopolítica. Afinal, como refletiu certa vez Fernanda em dois dedos de prosa com este escriba, a sociedade brasileira se constituiu pelos povos originários e mais tarde pelos europeus que trouxeram para cá os negros africanos de modo a escravizá-los. 

Lançado há 30 anos, “Da Lata” é a cara do Brasil. Não tem jeito: a lata brilha. Como é barata, usam-na com propósito percussivo. Carrega luxos e lixos. Talvez carregue maconha, maconha tailandesa, fortíssima, vinte e duas toneladas de fumo du bão despejado no mar e encontrado nas praias do Rio de Janeiro, em setembro de 1987. Malucos fizeram a cabeça ali.

“Da Lata” faz uma espécie de sociologia dos sons brasileiros – Foto: Walter Carvalho

De Cabo Frio (RJ) a Cassino (RS), milhares de latas tocaram a costa brasileira. Quem deu um pega diz que aquilo ali nocauteava. Fernanda se ligou na gíria: da lata. Ela trabalhava nas músicas do que viria a ser o disco sobre o qual me atenho quando lembro daquele verão pretérito. Eis o seu “Veneno da Lata”: “Swing-balanço-funk/ É o novo som na praça.”

Essa música traduz “Da Lata”, espécie de sociologia sonora brasileira. Uma sociologia em forma de disco, por assim dizer. Se tamborim e pandeiro são representações máximas do samba como símbolo cultural, a lata reflete o batuque e a desigualdade nacionais. “A lata é a alternativa do caminho oficial”, fraseia a cantora, numa entrevista a “O Globo”, em 1995. 

Fernanda aglutina ritmos, opções estéticas e sonoras, tendências discursivas. Ela lança as bases do samba-funk. A artista reinterpreta a bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto, o samba esquema novo de Jorge Ben, o soul de Cassiano e Hyldon, o funk do DJ Marlboro.

Segundo o pesquisador Hermano Vianna, em texto de divulgação escrito em 1995, “Da Lata” preconiza que o pior já passou. Como num sonho utópico do antropólogo Darcy Ribeiro, afirma Vianna, a cultura reinventou a cidade, “criando as bases para a instauração de um período de tranquilidade e criatividade que vai tomar as ruas como um arrastão”. 

Multicultural por excelência, “Da Lata” inicia seu périplo musical pelo suingue das escolas de samba, passa então pela pista de dança, pelo tropicalismo de Caetano Veloso e pela poesia marginal de Chacal. Chacoalhar o esqueleto — esse é o grande lema ali. Tá na hora dessa gente mostrar seu valor no compasso, meio samba, meio funk, do escândalo dançante.

Ou seja, resta carnavalizar-se e sair requebrando numa sambadinha funky. “Essa música tem uma divertida safadeza dançante e Fernanda bota pra fora, na lata, esfrega na cara de todos na maior fé sua porção cabrocha bailarina go-go”, pinça Fausto Fawcett. Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu é a rainha na folia, esse momento no qual estruturas sociais se invertem. 

Produzido por Liminha, “Da Lata” apresenta o funk unido ao samba. “Veneno da Lata”, parceria de Fernanda Abreu com o músico suíço Will Mowat, mostra que o Brasil se submerge na desigualdade enquanto seus trabalhadores naquele ano 1995, às 7h30, desciam para trabalhar. “Pra ter o que ganhar”, canta Fernanda, com Herbert Vianna. 

Capa do disco lançado em 1994: sociedade retratada no batuque do samba-funk – Foto: Walther Carvalho

Do samba ao funk

“Suingue-balanço-funk/ É o novo som na praça/ Batuque-samba-funk/ É veneno da lata/ Vamo’ batê lata!”, vocaliza Fernanda, cuja mixagem dessa faixa e das demais ocorreu em Londres no estúdio da banda Soul II Soul. Mowat, derretendo-se pelo som e pela carioca, classificou o álbum como “excepcional” e decretou que havia ali base sólida para o futuro. 

Tem funkão, é claro, como se escuta na segunda faixa, a “Garota Sangue Bom”. Toneladas de grooves, groovão loquaz, tipo aquele do calibre sensual sintetizado pelas ondas de um corpo feminino. Luz gostosa da boate. Dá gosto ver a inteligência movendo um corpinho como esse. Profusão de melodia, harmonia e percussão: “Garota carioca/ suingue sangue-bom.”

Samba-funk na veia, a faixa mostra-nos o valor da gente bronzeada que sacoleja nos bailes e nas periferias com o som da pesada. Quando saiu “Da Lata”, em 1995, o funk acariocou-se. Antes, refresquemos o cocuruto, o estilo ficava preso à batida do Miami Bass. DJ Marlboro mudou a história, no entanto. Certos hits reuniam multidões a reboque dos MCs. 

Ligado às classes desfavorecidas da sociedade, o funk era ignorado pela indústria cultural. De certa forma, pensando nessa perspectiva, a terceira canção de “Da Lata”, “Tudo Vale a Pena”, de Fernanda e Pedro Luís, aborda a luta dessas populações à margem: “Povo bamba/ Cai no samba, dança funk/ tem suingue até no jeito de olhar/ tem balanço no trejeito.” 

Assim, vivendo “Um Dia Não Outro Sim”, a cantora fala que será fiel aos amigos até o final. Na estrofe seguinte, embalada pela batida dos bailes, avisa: “Fique na sua e talvez/ ainda possa te ouvir”. É mais direta aqui: “Quem é você/ pra me dizer/ o que eu devo fazer”. Caetano Veloso recebe homenagem — justa, na verdade — em “A Tua Presença”. 

Mas o Brasil, para Fernanda, é o país do suingue. Com a guitarra dançante de Fernando Vidal, convida-nos para requebrar em Pernambuco curtindo o manguebeat recifense. “Funk Noroeste/ Funk Centro-Oeste”, fala, antes de bater a real ao dizer que “Esse é o Lugar” e que “Jorge Ben Jor é daqui/ James Brown é de lá/ Carlinhos Brown é de todo o lugar”.  

Contudo, uma audição detalhada é suficiente para entendermos que “Da Lata” não se prende ao funk carioca. O disco revela vocação pop internacional, desde a produção assinada por Will Mowat até a ida para Londres. “Dois”, por exemplo, volta-se à dance music, “Somos Um (Doomed)” resulta balada e “SLA 3” põe samba e funk juntos. 

Poeta marginal de versos telegráficos, Chacal divide os microfones com Fernanda em “A Lata”: “A lata/ no fundo da madrugada/ de repente foi chutada/ na batida.” O álbum se encerra com “Babilônia Rock”, disco music alto-astral. “Da Lata” é o Brasil em sons. 


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