Documentário reposiciona Odair José na música popular brasileira
DM Redação
Publicado em 10 de outubro de 2025 às 19:00 | Atualizado há 1 hora
Marcus Vinícius Beck
Dirigido pela cineasta Dandara Ferreira, o documentário “Vou Tirar Você Desse Lugar” reposiciona a obra do cantor e compositor Odair José na música popular brasileira. O filme, longe de ser uma mera biografia linear, estreou nesta semana durante o Festival do Rio.
Nos anos 1970, Odair viu a elite artística erguer contra si um edifício de ignorância a partir de um certo jornalismo musical que o julgava cafona. Não passava, vendo com a lupa de hoje, de um apartheid estético cuja intenção era separá-lo daquela fração, digamos, nobre.
Seu erro, notemos, era fazer sucesso radiofônico: não pode. Suas letras, observemos, soavam um tanto rodrigueanas: mau gosto. A vida como ela é, indicou Nelson Rodrigues, perturba quem canta o dia de luz, a festa de sol e os barquinhos a deslizar pelo mar de Copacabana.
Além do mais, tratava-se de música apreciada por proletários urbanos, donos de bar, gente simples e interiorana, usuários de drogas, profissionais do sexo, desquitados e desquitadas, empregadas domésticas e assim por diante. Nada a ver com a bossa nova, convenhamos.
Odair polemizava, aqui e ali, ao abordar tabus. Sabendo-se artista sintonizado com o povão e sua realidade, o compositor concebeu, em “Vou Tirar Você Desse Lugar”, de 1972, um eu lírico que se confessa apaixonado por uma prostituta. Tornou-se um clássico popular.
Em busca de distração, o sujeito poético frequenta o prostíbulo e, na segunda vez, revela à garota de programa que o atendeu não estar ali à procura de diversão. Assume-se gamado, enfeitiçado, e não consegue ficar sem os afagos da moça nem tirá-la da cabeça encantada.
Na dissertação de mestrado “Ame, Assuma e Consuma: Canções, Censura e Crônicas Sociais no Brasil de Odair José”, defendida em 2015 na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), o historiador Ivan Cavalcanti chama a atenção para o viés cotidiano da letra odairniana.
Segundo o estudioso, as mulheres que se prostituíam naquele tempo vinham da pobreza e, não raro, suas famílias tinham péssimas condições financeiras. “Aceitavam o trabalho e acabavam sendo socialmente excluídas”, reforça Cavalcanti em sua historiografia.

Ressoa o arranjo de cordas: lírico. A voz confessional de Odair narra o amor de um rapaz — ao que tudo indica de classe média — por uma empregada doméstica. Gostando, ele declara para ela que sabe de sua rotina laboral. O cabra apregoa: “deixe essa vergonha de lado.”
Em 2006, houve uma releitura manguebit dessa canção pelo Mundo Livre S/A. Fred Zero Quatro, vocalista, rebobinou a memória infantil de quando morava no interior. Odair José aparecia nas AMs com seus sons românticos. Eram os favoritos do pequeno mangueboy.
Cifradamente, Odair José se regozijou pelos baratos da maconha na música “A Viagem”. O cronista, em certa altura da letra, solta a fumaça na cara dos caretas: “Venha comigo na minha viagem / Não se preocupe, eu tenho as passagens / Venha comigo viver de verdade.”
Para Ivan, o discurso da canção se parece, “em muitos aspectos”, com o adotado pelos hippies. “[A música] passou pela censura sem que os responsáveis percebessem que se tratava de uma alusão à maconha”, salienta o historiador na pesquisa acadêmica.
Como um Cat Stevens do Centro-Oeste, Odair inventou arranjos-chiclete. Escreveu letras simples mas instigantes, deixou-se influenciar por Paul McCartney e Neil Young, temperou sua música com o balanço funky — sobretudo no elepê “Assim Sou Eu…”, de 1972.
Raulzito
O amigo Raul Seixas incentivou-o a produzir letras como se fossem reportagens. A CBS, é claro, achou que aquilo não daria em nada. Atrás de autonomia, assinou com a Polydor. Lá ligou-se a José Roberto Bertrami (piano), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti (bateria).
Todos, hoje, são respeitados mundo afora — juntos, formariam o Azymuth. Algumas das guitarras daqueles discos produzidos entre 1972 e 1975 têm o punho suingado do soulman Hyldon, autor do hit “Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapé)”, de 1975.
Fechava a banda o violonista Luiz Claudio Ramos. Arranjador requisitado e violonista habilidoso, o músico pôs sua capacidade melódica-rítmica a serviço de Odair. Claudio Ramos, décadas mais tarde, se consagraria como maestro de um tal Chico Buarque.
Considerado um artista popular, de rádio, foi convidado por Caetano Veloso para participar do festival Phono 73. Sua agenda, na ocasião, vivia cheia — 30 shows por mês. O tropicalista pediu para cantar “Vou Tirar Você Desse Lugar”. Contudo, o público vaiou Odair.

No livro “Eu Não Sou Cachorro, Não”, responsável por redimensionar a obra de Odair, o historiador Paulo Cesar Araújo apresenta uma visão interessante sobre a tal dicotomia cafonas versus MPB. Esta, na visão do pesquisador, serviria a uma noção de país moderno.
“As canções de Odair José ou de Waldik Soriano estavam ali, bem próximas, para lembrar que o Brasil, ou grande parte dele, é miserável, sim!; é subdesenvolvido, sim!; é analfabeto, sim! E isto a emissora do Jardim Botânico queria varrer para debaixo do tapete”, pontua.
Em 1977, Odair mudou de direção. “Quem repete fórmula não faz arte, faz negócio”, me contou. Pois lá foi o artista, um dos nomes mais importantes da música brasileira, fazer a ópera-rock “O Filho de José e Maria”. Mas acabou, como hoje diríamos, cancelado.
A obra, ao todo, traz dez faixas que narram a vida de um jovem. Com 33 anos, ele é pobre. Vive entre excesso e sofrimento. A acentuação roqueira aparece na primeira canção, “Nunca Mais”, com a guitarra flutuante de Hyldon na introdução: “Sou o filho de José e Maria.”
Os arranjos de base, por sua vez, são de Odair, enquanto o inigualável Don Charley criou os de sopro e cordas. “Lá nos anos 70, eu tive dificuldade com ‘O Filho de José e Maria’. A igreja na época ameaçou me excomungar. Não sei se excomungou. Não fui atrás”, me disse.
Para o pesquisador Diogo Direna Fonseca, autor da tese “Entre o Brega e o Rock: a Ressignificação da Música de Odair José”, defendida em 2015 na UFF, a primeira música do lado B, “O Casamento”, descortina a rebeldia. Odair interpreta padre que questiona o sacristão para saber “quem são essas pessoas” e “o que elas querem aqui na minha igreja”.

“Já na faixa-título, desfeito o casamento, o músico narra a rotina do filho de um casal divorciado: ‘Maria e José se amaram e um lindo menino nasceu / Depois eles dois brigaram e o menino sofreu (…) Seis meses na casa do pai / Seis meses na casa da mãe’”, analisa Diogo.
Daqui por diante, Odair caiu em desgraça. O artista lembra essa fase no documentário de Dandara Ferreira. Passou, que terrível!, a se drogar. Fumando maconha e cheirando cocaína aos montes, chegou a dirigir até a ponte Rio-Niterói para se atirar na Baía de Guanabara.
Não bastasse isso, o cantor teve a carreira estagnada nos anos 1980 e 1990. Ressurgiu na década de 2000, com o livro de Paulo Cesar Araújo, “Eu Não Sou Cachorro, Não,” e o “Tributo a Odair José”, de 2006, que reuniu Paulo Miklos, Pato Fu e Mundo Livre S/A.
Otto não poupa elogios: “Odair é um cara importantíssimo para o Brasil, importantíssimo para mim. […] Odair é um cronista, é um cara que tem uma personalidade muito grande nas suas músicas, nas suas letras, nas composições”, disse ao “Farofafá”. Odair José é clássico.