A morte é uma ameaça aterradora
Redação DM
Publicado em 28 de janeiro de 2017 às 01:30 | Atualizado há 9 anos
Sonhei que havia morrido. Meu tempo na terra chegara ao fim. O frio da foice, o hálito gelado e a insuportável figura da morte sentencia com seus dedos secos:
-Chegou a sua hora.
O homem tem medo do juízo final. Por isso luta para viver mais, mesmo que seja para viver uma vida de sacrifícios. Entre o trabalho e o ócio a ideia é enrolar a morte. Sísifo, da mitologia grega, carregava pedras para o topo da montanha. Ao chegar ao cume a sua pedra desembestava ladeira abaixo. O mortal Sísifo, humildemente, recomeçava o seu trabalho. Assim, carregando pedras, o homem passa o seu tempo. Mas a figura esquelética da morte é uma ameaça aterradora.
Enfiei a cabeça debaixo do travesseiro e, paralisado na cama, esperei a minha sentença. Nisso ouvi o canto do sabiá na laranjeira. Deu-me um certo alívio ouvir um pássaro da terra. Ainda com os olhos fechados pensei: “No paraíso tem sabiá?”. Tentei imitar o canto do sabiá para me acostumar com a nova morada. Imagino que a trilha sonora do paraíso é regida pelas sinfonias de Bach e os passarinhos de Manoel de Barros. Meu assovio sai desafinado com jeito de mula manca. Ouço o latido da cachorrinha vira-lata que nem aqui dá sossego aos meus ouvidos. Mas hoje o seu latido soa como uma melodia agradável a me dizer que foi somente um pesadelo. “Estou vivo, graças a Deus”. Descubro a cabeça bem devagar. E, por uma fresta da cortina, com apenas um olho aberto, enxergo uma clara manhã.
Com um certo alívio percebo que este não foi o meu dia final. Mas alguém morreu em algum lugar da terra. Pulo da cama com a certeza da morte inevitável dos mais de seis bilhões e meio de almas que povoam o planeta e vão desaparecer em cerca de cem anos. Uns vão à outra dimensão, outros, depois de passearem pelo cosmo, voltam com mais experiência. Agarro-me com unhas e dentes ao viver, mesmo sabendo que a pedra vai rolar ladeira abaixo. Minha obrigação é recolocá-la no ombro e subir mais uma vez a colina.
Abro a janela, a gatinha branca da casa espoja-se ao sol; eu à vida.Vou a rua para descobrir o arabesco da minha sombra; percebo os desenhos feitos no meu viver. Mesmo assim projeto o meu velório como uma alegre despedida. Um ‘até já’ aos parentes e amigos. Com direito a festa e muitas risadas das minhas gafes e equívocos ao me colocar melhor do que a natureza diz que sou. Zombo das minhas teorias acerca da existência; o homem é um perfeito idiota que passa a vida tentando revogar a morte inexorável. À amada digo que os momentos de ternura foram os instantes da verdade. Aos amigos peço para não aliviarem os meus erros e me considerar uma pessoa melhor.
Quando chegar minha hora, rogo à distinta senhora: me chame com carinho, mesmo que eu seja o ser arrogante que se julga capaz de mudar o mundo.
(Doracino Naves, jornalista; editor do Portal Raízes)