Como funcionava a Justiça na São Paulo colonial
Redação DM
Publicado em 27 de agosto de 2016 às 03:04 | Atualizado há 9 anosAdelto Gonçalves, jornalista, cronista e historiador, escreveu o seu terceiro livro de História. Romancista e contista, o seu interesse maior está na literatura, mas os seus dois primeiros livros na área de História foram sobre dois poetas setecentistas: Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). Mas, mesmo nestes dois livros biográficos – Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999) e Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003) –, Adelto é um cronista: ele adora os detalhes, as localidades, as vidas pessoais, os sucessos literários, as amizades e as brigas.
Além disso, os dois poetas também foram influenciados pelo sistema jurídico: o pai de Bocage foi juiz de fora em Beja, em Portugal, e ficou encarcerado durante sete anos, nas garras do intendente Pina Manique (1733-1805); e Gonzaga, o inconfidente ouvidor de Vila Rica, ainda voltou a ser funcionário régio durante o seu no exílio na Ilha de Moçambique.
Adelto nestes dois livros mostra como se pode fazer História sem obrigar o leitor a enfrentar um texto enfadonho. As duas obras são um tesouro de detalhes para os historiadores e apresentam muitas informações novas sobre os dois poetas. Já em seu novo livro, Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial: 1709-1822 (São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), ele estuda um tema bem presente nos outros dois: o Direito setecentista, mas, desta vez, na capitania de São Paulo.
O autor considera este livro um trabalho complementar aos de Stuart B. Schwartz e de Arno e Maria José Wehling sobre o Tribunal Superior da Bahia e o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, respectivamente. Mas este livro de Adelto é um pouco diferente: é menos um estudo institucional e de suas práticas e mais uma análise da atuação dos funcionários e do comportamento das pessoas.
Também não se inicia com o ano da criação da capitania (1709), mas sim com a colonização de São Vicente no século 16, com o donatário perto da sua cidade natal, Santos. A exemplo de seus dois livros anteriores, este é igualmente inclusivo e amplo. Inclui Rio de Janeiro e Salvador, quando administravam o território de São Paulo, o que abrange todo o período colonial.
O retrato que Adelto Gonçalves traçou mostra o desenvolvimento de cargos relacionados com o dinheiro. No período inicial, o Direito ficava nas mãos de uma variada classe de funcionários: juízes ordinários, vereadores, meirinhos, provedores e corregedores, que não tiveram uma educação formal na Universidade de Coimbra, em Portugal. Julgavam e decidiam com base nos usos e costumes. Era difícil pagar o salário de um funcionário, se não houvesse uma base financeira. Por isso, o governo em Portugal até hesitou em nomear novos representantes de seu poder em tempos duros.
Por exemplo, a cidade de São Paulo, durante a Guerra da Sucessão Espanhola, nem contou com ouvidor nem governador. Afinal, faltava representação a Portugal. Importante era que os outros funcionários, da Câmara, da Provedoria, da Alfândega, os juízes ordinários, eram todos oriundos de famílias locais e faziam movimentar a Justiça e os negócios do Estado. Quase todos tinham comprado os seus ofícios, que ficavam entre membros de sua própria família durante várias gerações.
Depois da separação das capitanias de São Paulo e Minas Gerais, a situação mudou para um regime de reinóis. Os dois principais cargos de Justiça eram os de ouvidor e o de governador e capitão-general (cargos concomitantes). Os ouvidores administravam a Justiça na comarca, os juízes de fora na cidade ou nas vilas, enquanto o governador e capitão-general era a cabeça da capitania.
Para melhor entender como isso funcionava, Adelto descreve a atuação de cada ouvidor e governador setecentista (mesmo se não tomavam posse!) e explica como eles, na maioria das vezes, desentendiam-se. Até porque não estavam bem definidas as áreas de atuação de cada um. E um sempre podia invadir a seara do outro, o que causava descontentamentos e atritos.
Nesse sentido, Direito e Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo Colonial fica bem perto do livro sobre Gonzaga, que como ouvidor na Vila Rica, brigava bastante com o governador, o que também ocorreu em Moçambique.
Ou seja, a administração colonial não seguia um compêndio de regras fixas, mas dependia do humor e da decisão de personalidades. Utilizando a correspondência do Conselho Ultramarino e do secretário do Ultramar, o autor explica cada controvérsia, especialmente entre estes dois altos funcionários e oferece boas explicações sobre os acontecimentos na capitania. Fiquei, por exemplo, bem surpreso e contente com os detalhes acerca do roubo do quinto de Mato Grosso (o ouro foi trocado por chumbo). Aqui, Adelto se mostra um minucioso pesquisador.
Com a chegada da Corte em 1808, mudaram-se também os poderes nas capitanias, inclusive na de São Paulo. Entrou aqui no jogo político uma importante família local, a de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). No caso da capitania de São Paulo, as elites locais passaram a ter um contato direto com o centro do poder, que ficava no Rio de Janeiro. Assim, mudou-se a balança de um governo de reinóis para um governo essencialmente paulista.
O autor nunca quis dar a palavra final sobre a justiça colonial, mas, com certeza, deu início a um debate. Afinal, os historiadores vão encontrar neste livro informações importantes, especialmente sobre ouvidores, juízes de fora, juízes ordinários, vereadores, corregedores e provedores e a própria Justiça à época. Como está para ser publicado também o livro Magistrados a serviço do Rei: a administração da Justiça e os Ouvidores-Gerais na Comarca do Rio de Janeiro (1710-1790), de Isabela de Mello, temos de agradecer a estes dois autores por terem dado à Justiça o lugar que merece na História do Brasil.
Direito e Justiça em Terras d’El-Rei na São Paulo Colonial, 1709-1822, de Adelto Gonçalves (São Paulo: Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo, 364 págs., 2015, R$ 55,00). ISBN: 978-85-401-0138-8. Site: www.imprensaoficial.com.br
(Ernst Pijning, doutor (PhD) em História pela Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, Maryland, Estados Unidos, e mestre em História pela Universidade de Leiden, Holanda. Professor desde 1999 da Minot State University, de Dakota do Norte, Estados Unidos. Especialista em História da América Latina, seus interesses de pesquisa abrangem o Atlântico-Sul, incluindo Brasil e África, e o comércio intercultural no século XVIII)