Brasil

DECIFRANDO O MUNDO

Redação DM

Publicado em 1 de maio de 2016 às 01:00 | Atualizado há 8 meses




“… À poesia devo tudo que tenho, que não é material, mas o conforto de entender o milagre da consciência que quer decifrar o mundo, a irmandade dos seres humanos, as utopias da paz e da justiça. Mesmo nos momentos mais duros, em que meu corpo foi ostensório de lutas, quase sempre altruístas, nunca tive retaguarda ou muro de proteção que não fosse a própria poesia…”

“Ao possível leitor, sou grato pelo olhar da atenção. Ao leitor, meu canto.”

AIDENOR AIRES

(Palavra do Autor no livro Seleta Poética, 2005)

 

“Fernando Costa Filho é um artista plástico da província do mundo, vindo de um mergulho no caldo de tintura das profundezas dos Novos Jesuítas de Goiás (intérpretes do paraíso prometido e do inferno previsto), e de onde surge como uma expressão absolutamente singular…”

“… Em sua obra, Fernando Costa Filho constrói a planta de uma catedral gótica sobre o horror fúnebre de uma velha catedral romântica. Devolve-nos a liberdade de pensar, independente da capacidade troglodita de apenas sentir e terrivelmente constatar. Uma lição de liberdade, corrente, simples, universal.”

PAULO BERTRAN – 1985

Poemas do escritor Aidenor Aires (Riachão das Neves/BA). Telas do artista plástico Fernando Costa Filho (Goiânia/GO), fotografadas por Paulo Rezende.

INCOMUNICÁVEL

Os seres não se tocam

na contramão do dia.

Bólides de medo e distância,

os seres se proíbem

em data e pleito

que se adia.

 

[…]

 

Os seres não se tocam

na dor de ser presente,

ofertam-se em casca

e negam-se em semente.

 

São margens e consentem

intactos territórios.

Por isso, é tudo abismo

o que a mão prolonga,

é tudo abismo

o que o beijo alcança.

 

ELEGIA URBANA

O olho do homem pousa sobre a cidade

perquirindo mortos.

E o mar de mortos arrastas pela geométrica floresta

as velas desossadas.

 

Já não conhece o beco da infância

entre avenidas,

o jardim humilde nos estilhaços de luz

atropelada.

 

O olho do homem pousa sobre a cidade,

prisioneiro do horizonte

edificado.

 

Solitário desliza pelas marquises

e ensaia uma antiga melodia entre ruídos.

Vai cantado sob a cúpula cinérea

o irretornável dia da infância consumida.

 

Palmilha as catacumbas

na exaustão vertical dos edifícios

e sobre os despojos do dia

recupera

a tímida e precária poesia.

 

O olho do homem pousa sobre a cidade

e se consegue estranho

na pátria de concreto.

É triste passageiro mortuário

de um mundo que prescinde do seu gesto.

 

Pondera a dor da aventura, querer profundo,

e sabe que a insônia não redime

aquilo que o engenho transformou

e, sobre o natural, acrescentou ao mundo.

 

NÃO PROCUREM MINHAS LÁGRIMAS EM PARIS

NÃO PROCUREM MINHAS LÁGRIMAS EM PARIS

Nesta noite treze, de treda enunciação de treva,

não quero estar em mim, contando penas

e ensanguentados paralelepípedos de Paris.

Poeta de vulcânicas palavras e flébeis mãos despetaladas,

aflijo-me à varanda, desabitado de todo o sonho

que coloniza a minha estrada.

 

Em Paris choram Rousseau, Mirabeau, Verlaine, Rimbaud.

Chora Jeanne Darc, choram os perdidos seios de Brigitte,

e coloniais heróis em panteões e arcos de triunfo.

Nesta noite treze, de treda lua, posso emprestar meu ombro

para recepção das lágrimas,

que em mim há muitos mortos, e todos lamentosos.

Há em mim um cemitério galopante

onde irmãos sem nome fatigam sem descanso

e sísmica agonia.

 

Não posso nesta noite treda de desavisada madrugada,

recolher-me ao território de meu lirismo ímpio.

Não posso acotovelar-me, ou ajoelhar-me nos pedregulhos da infância.

Não invoco a mão materna, nem o paterno cuidado evanescido.

Que é tanta a dor no mundo, e consentida.

 

Há dor pelas ruas de París, a cortesã de todas as adolescências.

Há clamor nas praças, nas esquinas, nos cafés poeticamente desertos.

Há uma dor que escorre pelo Sena, pela canção vagabunda,

pelos hieráticos museus.

E esta dor se amarra às pedras irmãs do mundo.

 

Chora e chora Palestina. Choram tendas e alfombras do deserto.

Chora o Rio Tibre, chora o Nilo,

e nele chora a dolorosa água do mundo.

 

Em Paris, em noite treze e treda, não vejo o chão

forrado de carne gaulesa destroçada;

nem persa, nem árabe, nem semita, nem áfrica,

ou fel ameríndio desterrado.

Em Paris, irmãos meus rasgados e odiados

vamos todos escorrendo pelas pedras.

E em algum lugar do vasto mundo, ocos, fátuos, nulos

de nossa morta utopia decapitados,

vamos armando novos bombardeios e novas bombas.

Vamos afiando, nos berços arenosos,

punhais e cimitarras degolantes.

 

Nesta noite treda, de antiga e treda treva,

renuncio ao sol, à alvorada.

Curvo-me até o chão, benzo-me três vezes,

como me ensinava minha mãe.

Pranteio cinco vezes na direção sagrada.

 

Não choro por ti Paris incendiada,

Não choro por ti meio oriente ensanguentado.

Choro pelos filhos não nascidos,

Choro pelas noivas, pelas mães, pelos úteros e seios

sonegados à vida, sonegados à paz.

 

Não procurem minhas lágrimas em Paris

na noite treda, de treva e sangue.

Esta noite fui expulso de mim.

Minha alma, no relento, nesta noite treda,

está chorando o mundo.

 

PROCISSÃO DO FOGARÉU

Defuntos oram debruçados nos morros

e o deus extinto repovoa as almas.

Aflitas almas coleando, súplices, o martírio.

Um leve círio pirilampeia a turba.

Onde o justo roubador da morte?

Onde a porta defendente e oculta?

Querem o doador do sangue, prometido.

Querem o nunca irrevelado trânsfuga.

Santelmo, cirial, em vela, em chama,

desenrola sucuruiú de luz esparramando.

Na escuridão vazada, em contorção,

goza a ferida das chamas vacilando

e o fugitivo deus vai escorrendo

em baba de fervor e de lembrança.

Nossos fachos, em procissão…. Navega

pelas ruas, penitente, o fogaréu,

buscando pelas pedras, seixos, hortos,

o embuçado santo no seu véu.

 

Vem, Senhor! Vem, Senhor!

Do homizio, insurge, suplicamos!

Os perdidos do mundo, pelas tochas,

O embuçado luminoso procuramos!

 

E agora, em préstito e alarme,

dá que encontremos nossa face

que nas naves da infância

 

PICTURES AT NA EXIBITION

Ao Amaury Menezes

 

É bem possível

que o Criador,

fazedor de coisas

e de mundos

fosse, por profissão,

aquarelista e mudo.

 

Por isso

é que vivia em seu silêncio

um imenso atelier

que era nada

e que era tudo.

 

Gozava-se

em eterno líquido.

Sonhava cores

da individual que arquitetava

no flash

no vupt

do fiat lux.

 

Só depois veio o verbo

e alardeou o que o silêncio

em sinfonia guardava

– a gloria de ser cor.

 

Só então ficou

esta angústia no mundo:

morando em tudo,

permanecendo em nada,

pois não há milagre

que esgote

na cor do sonho

que carrega a face oculta

de outra cor guardada.

 

A página Oficina Poética, criada e organizada pela escritora e acadêmica Elizabeth Abreu Caldeira Brito, é publicada aos domingos no Diário da Manhã.Esta é a 219ª edição (desde 08/01/2012). [email protected]


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