Ébrio poeta sóbrio
Redação DM
Publicado em 6 de abril de 2017 às 01:30 | Atualizado há 8 anos
Esta minha ficção, até que poderia ser realidade; trata-se de um diálogo entre dois poetas:
– Chega o crepúsculo carregado de nostalgia, e com ele a vontade extrema do mágico êxtase poético. Essa hora sagrada pede um bom aperitivo com gelo para abastecer o bucho de combustível ardente.
– Pois saiba que a minha poesia é limpa; a sua é como um lírio de brejo. Não preciso de nenhum porre nas veias para fluir um poema cristalino da minha corrente inspirada. Não sou apenas um mero produtor de metáforas!
– Não sou ignaro; quero beber solidão dos túmulos dos dias já passados; talvez eu veja a ilha pacífica dos sonhos, onde impera o silêncio (a única coisa que deixa de ser quando é dita).
– Deixa disso, rapaz. A bebida é fluido maligno de demônio engarrafado. O devaneio bêbado é vício de anestesia para fugir da viscosa realidade. O mundo é mais puro, mais sujo, mais roto e mais duro!
– Essa eu vou anotar… Eu quero beber anestesia, ingerir a gélida solidão. Estou sentindo as vibrações fervilhantes: o poema está percorrendo meu corpo, rastejando sutilmente até nascer – de parto normal – pela ponta da caneta. Estou sentindo as coceiras dos pés até os joelhos em realçado formigamento. É o poema!
– São pulgas! Esse bar está infestado. Vou reclamar com seu Manoel.
– É o poema, seu satírico. Estou em transe poético profundo. Estou suando lirismo e minha camisa já está molhada. Isso é inspiração.
– Conheço bem o processo, mas isso é transpiração!
– Não, meu chapa, é que o crepúsculo me deixa inspirado, aí eu nado no rio do devaneio sonhado, com a canoa da solidão e remos de silêncio, perto das margens da imensidão…
– Está ficando bom! Desça do barco da melancolia, na praia anestésica da sua inspiração e pise no chão de ausência suprema.
– Muito bem! Aí eu deixo de ser e aconteço, deixo de acordar e amanheço, deixo de viver e amadureço, deixo de dormir e anoiteço. Quebro meus passos de eremita e quebro os estilhaços do dia. Beijo de língua os lábios da noite.
– Se tua mulher sabe disso!…
– O que sabe o homem? O tudo e o nada se completam; o resto é mistério. Principalmente a mulher, um tesouro encontrado. Dá-me essa mão suave, de epiderme em pétalas, doce e bela fruta do Éden!
– Está me estranhando? Sai pra lá!…
– Não é você, equino! É a noite. Entorne um uísque!
– Negativo! Faço versos em estado normal e original: sou meu próprio recomeço, às vezes inteiro, às vezes ao avesso, a cada dia que o sol me levanta, mesmo quando o primeiro passo, ao invés de dança, é um tropeço!
– Essa foi boa! Cadê o meu bloquinho?… Ih! Não consigo escrever; acho que é emoção!
– Acho que é embriaguez! Vamos embora, antes que você queira namorar um poste e falar de estrelas!
(Leonardo Teixeira, escritor)