Grandes romances são construídos de dúvidas e surpresas
Redação DM
Publicado em 13 de dezembro de 2016 às 01:37 | Atualizado há 9 anosA maioria das obras literárias de grandes escritores, quando eternas, é repleta de dúvidas e surpresas. E esse é o caso de Machado de Assis, nosso maior escritor. Quem lê seu maior romance, Dom Casmurro, deparar-se-á com a dúvida que atormenta a mente de Bentinho no transcorrer da narrativa machadiana: a possível traição de sua esposa com seu amigo, Escobar. O ciúme do principal personagem machadiano de sua mulher é o combustível que fermenta a possível traição de Capitu. Mesmo que ela não tenha traído, Bentinho, tal qual a Desdemona de Otelo, de Shakespeare, sente e sofre com aquele olhar oblíquo e dissimulado de sua amada direcionado a Escobar. Afinal, Capitu traiu ou não traiu? Confesso que não sei a resposta. Aposto que o leitor destas linhas, caso tenha lido o romance, carrega consigo essa dúvida construída pelo bruxo do Cosme Velho em seus escritos, há mais de 150 anos.
Outro grande autor de nossa literatura, Guimarães Rosa, sustenta, ao longo das mais de 500 páginas de Grande Sertão Veredas, o amor proibido entre Diadorim e Riobaldo. Amor proibido pela ambiência machista do sertão, que jamais admitiria esse sentimento entre dois jagunços.
No final do romance, vem a surpresa: Diadorim vestia-se com trajes masculinos, mas era, na verdade, uma mulher, que se juntara aos jagunços para vingar o assassinato do pai. Era, contudo, tarde demais. O amor entre Riobaldo e Diadorim não pôde se concretizar pelo fato de a descoberta ter ocorrido no leito de morte da personagem rosiana. Como nas tragédias gregas, essa tragédia se consolida no final do romance.
Falemos, então, dos amantes e das surpresas nos romances literários latino-americanos de origem hispânica. Nesse sentido, destacam-se dois prêmios Nobel do continente: o colombiano Gabriel Garcia Márquez (Gabo, para íntimos) e o peruano Mário Vargas Llosa. Gabo, no clássico que consolidou o realismo mágico na América Latina, Cem Anos de Solidão, constrói a grande metáfora da região contando a história dos Buendia. No final da obra, vem a revelação da grande surpresa do romance: um casamento entre primos resultara num filho com rabo de porco, que foi devorado pelas formigas. Põe-se, enfim, um final aos cem anos de solidão da família, pois assim estava escrito no pergaminho que previa o fim da árvore genealógica da família: “Era irrepetível desde sempre e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra”. A chave da extinção se centrava no fruto proibido da consanguinidade.
A Festa do Bode, romance de Mário Vargas Llosa ambientado nos tempos da ditadura de Trujillo, na República Dominicana, é o exemplo de mais uma surpresa que se desvenda no final. O mistério é evidenciado logo nas primeiras páginas do romance. Urania, após anos vivendo no exterior, retorna a seu país com um ódio incontido pelo pai. O talento do escritor leva a dúvida até o final do romance. No transcorrer desse, permeia de dúvidas o comportamento de Urania. Ela, ainda menina, foi levada para saciar as sevícias do ditador na casa de encontro que ele mantinha para encontros libidinosos.
Encerremos as surpresas com a rejeição de Odette de Crecy, personagem de Em Busca do tempo Perdido, pela sociedade francesa que a circundava. O leitor só descobre o porquê dessa rejeição depois de enfrentar os seis volumes desse seminal romance do francês Marcel Proust. O passado da personagem, repleto de incontáveis amantes, fez-se presente para explicar essa rejeição ao longo do romance.
Conclusão: surpresas e dúvidas só se sustentam na narrativa dos grandes escritores que conseguem, com os seus talentos, articular as partes de um todo dos romances universais feitos para vencer as areias do tempo.
(Salatiel Soares Correia, engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em Planejamento Energético. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca. Obras e Personagens que Fazem nossa Época)