Brasil

Nelly Alves de Almeida, a estrutura fundamental da literatura feita em Goiás

Redação DM

Publicado em 6 de agosto de 2016 às 03:45 | Atualizado há 9 anos

Na última sessão da Academia Goiana de Letras, ano de 2016, a presidente Lêda Selma de Alencar incumbiu o Acadêmico Miguel Jorge, para discorrer sobre a vida e a obra da escritora centenária Nelly Alves de Almeida, pesquisa do Acadêmico Luiz de Aquino, encerrando com chave de ouro o ano acadêmico.

Eis, em síntese, o panegírico da genial escritora.

Movimento 1. É o depoimento de Nelly, evocando seus primeiros anos: ‘Era a minha infância que surgia, fresca e loira; os anos iam caindo como fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas’ (Machado de Assis).

“Poderia dizer, desde o início do primeiro movimento, que a vida é eterna experiência, módulos qualificados para aceitação ou recusa nos ‘Tempos de Hoje ou de Ontem’.

Importante, mais do que parece à primeira vista, é notar e assinalar, a espontaneidade, inclusive espiritual, despojamento interativo, de Nelly Alves de Almeida, para escrever seu livro: Tempo de Ontem, Memórias e Estórias, limiar perceptivo da consciência psicológica na sucessão de fatos, principalmente da infância, à guisa de efeitos e compreensão de um tempo em que tudo era paisagem e descobertas.

Encontra-se, aí, a qualificação da escritora, tratado de afirmação de seu estilo único, inconfundível, como se fosse uma luz, iluminação definitiva sobre sua vida em família; a infância, avaliada em eternas descobertas, abrindo caminhos para novas perspectivas, com definição própria para dois mundos: o da cidade, – convivência com aceitação de vida moderna, e o mundo rural, onde ela, em criança, passava férias na fazenda da família. Foi com esta casualidade que Nelly escreveu, em seu ‘Tempo de Ontem’, à pág.35, Imprensa da UFG, 1952, excelente relato contextualizado para o riso, o humorismo desinteressado intitulado ‘Um pouco de humor’. Trata-se de história típica, de imagens possíveis, no espaço rural de outrora, onde uma menina analfabeta, aos oito anos, chamada Nelly, ouvia a pergunta: ‘Nelly já saiu do abcê? Era o estribilho triste, agudo, doloroso que me feria os ouvidos, e que eu adivinhava ressoando no ambiente’, escrevia, ela.

E Nelly retornou a sua vida íntima de infância, na simultaneidade do convívio coletivo em zona rural para enfocar estórias que jogam com grandes espaços, o centro pessoal de sua vivência pródiga em acontecimentos inesquecíveis.

Movimento 2 – Pouco a pouco, as palavras de Nelly, como se saídas das manhãs, se aproximam, em versos, das pessoas que lhe são caras.

‘A Dor da Perda, a Sensação Consciente de que o universo inteiro abria-se em lenta agonia para ela, como se fosse possível retirar de dentro de si, o sofrimento, um pequeno lance, possível que fosse, de abolir o que o destino lhe reservara.

“Clássica no vestir, no falar, na existência em família: O marido Dr. Humberto Ludovico de Almeida, os filhos, Humberto  Filho e Paulo Humberto, a nora Terezinha Ludovico de Almeida, a neta Clarissa Teixeira Ludovico de Almeida, no acordar para a vida. Alma boa a abrir-se em enciclopédia para ajudar as pessoas, os iniciantes nas letras, a literatura a sair das sombras para iluminar  caminho, os seus caminhos, e de tantas outras pessoas. Nelly era assim: Sorridente, amável, profissional, transparente em suas ações, sofrida na alma e no coração, a carregar consigo o sentimento da perda de uma filha, Heloisa Nelly, criança ainda a brincar no crepúsculo das tardes, na verde relva dos jardins, com a sensação consciente de ser criança, de ainda não saber o que se deseja da vida, mas que a sentia em seus dolorosos impactos. A professora de Filologia queria mostrar outro mundo para nós, ainda jovens estudiosos, agrupados em torno da ficção e da poesia. Corria o tempo do GEN (Grupo de Escritores Novos), aliás, Nelly Alves de Almeida associava-se aos sonhos dos jovens escritores, apontando caminhos, mantendo acesa a eterna inspiração do fazer literário. E, então, ela nos indicava o caminho interminável do saber aprender, a paciência de que tudo viria a acontecer.

Movimento 3 – A ‘Qualidade, o Prazer Peculiar de quem descobre a Solidariedade, o humanismo existente na Literatura. Mais ainda: A Literatura posta sobre a vida, ou ao encontro da vida, que Realidade e Ficção se mesclam na Duplicidade de sua origem, como que Nutridas de sua própria essência.

Nelly era meiga, às vezes dura se necessário fosse, nos caminhos que habitava. Saber ouvir ainda é uma das grandes sabedorias da vida. Assim era Nelly, com suas amizades, suas queridas confreiras da AFLAG, principalmente as idealizadoras daquela Casa de Cultura: Rosarita Fleury, Ana Braga. E por convite de suas fundadoras, me fiz presente à inauguração da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás. E lá marcaram presença vários escritores, testemunhas do surgimento de um novo espaço, matéria para sucessivas reuniões e trabalhos artísticos, em 9 de novembro de 1969: José Xavier de Almeida, Bariane Ortêncio, Heitor Moraes Fleury, Nelly Alves de Almeida, Humberto Filho, Rosarita Fleury, Ana Braga, Jerônimo Geraldo de Queiroz, Durval Teixeira, Jerônimo Augusto Curado Fleury, Auristela Belém, Elizabeth Fleury, atual presidente da AFLAG, tão importante para o Estado de Goiás. Então, partiram elas para novas jornadas na Literatura, nas Artes plásticas, na Música. Abriram-se, assim, outras janelas para o monumento sensível da palavra, das tintas, das pesquisas, das notas musicais. Constata-se, então, o verdadeiro desejo das mulheres da AFLAG de ampliar, com seu trabalho artístico, o panorama das artes feita em Goiás.

Foi com esta causalidade que Nelly Alves de almeida escreveu, em seu livro, Tempo de Ontem, à página 35, Imprensa da UFG, 1952, excelente relato contextualizado para o riso, o humorismo desinteressado, intitulado: Um pouco de Humor. Trata-se de uma história típica de imagens possíveis, no espaço rural de outrora, onde uma menina analfabeta, aos oito anos, chamava Nelly, ouvia a pergunta: – Nelly já saiu do abcê?

“Era o estribilho triste, agudo, doloroso que me feria os ouvidos e que eu adivinhava ressoando no ambiente”. Escrevia ela.

“Outra coisa que me irritava, profundamente, e me punha fora de mim era a grafia do meu nome com ‘y’ final, que me encabulava e que meus irmãos e primos gritavam, em coro, soletrando como para me aborrecer, num ritmo cadenciado que me exasperava:

 

Ne-le-nelêi-ly pissilone!

Como me feria os ouvidos aquele pissilone!

De outra feita, uma menina da fazenda, mais ousada indagava:

De onde qui ocêis é?

Pernóstica, entre desprezo e sapiência, respondi:

Do Brasil

E ouvi, orgulhosa, poderosa, a exclamação assombrada e coletiva:

Virge! É longe?

E eu respondi, acompanhando-as na mesma linguagem, desfiando só fios da minha mentira: – Deus me livre!

 

Tem treis meis que s’tamo no caminho. Ocêis nem imaginam os perigos que passamo.

“Quem nada tem a narrar sobre sua vida íntima é porque não a tem ou não a conhece” diz, Anatol Rosenfeld.

E Nelly Alves de Almeida retornou a sua vida íntima de infância, na simultaneidade do convívio coletivo em zona rural para enforcar estórias que jogam com grandes espaços, o centro pessoal de sua vivência pródiga em acontecimentos inesquecíveis.

Movimento 4. Revolucionária Forma de Viver em Plena Década de 60. Os Estudos Literários visando a Modificar a Violência, a Estupidez Humana, seja de qual espécie for. Os olhos viam, mas as palavras guardavam, comovidas, memórias de um tempo em que a razão justificava crimes. E mesmo com todos os afazeres domésticos, Nelly achava tempo para conversar, ouvir, aconselhar, tecer sua escritura, poemas, ensaios, oferecendo aos leitores novos postulados de crítica sobre escritores selecionados por ela. Se fosse preciso orar, orava-se. Se fosse preciso se alimentar, lá estava a mesa posta com biscoito, café, bolos, pão de queijo, doces. Faziam-se, também, pensamentos positivos, tomavam-se decisões importantes que, afinal, dizer-se o que de sonho se desejasse, não era difícil, nem impossível.

Lêda Selma, no discurso de sua posse na Cadeira número 14, ocupada antes por Nelly, evidencia as possíveis identificações na construção de suas vidas, ambas dedicadas à Literatura. Transmite-nos, Lêda Selma, postulados de possibilidades de uma nova transcendência. E, a certa altura de seu texto, utiliza expressões que eu chamaria de combinações afetivas, qualidades exclusivas de valores relacionados com ela mesma Nelly Alves de Almeida, – ah quanta saudade, mestra e amiga! – de quem só conheci o jeito carinhoso e terno, além da permanente disposição de orientar e sempre incentivar, mesmo a quem apenas tentava esboçar os primeiros passos, em direção à caminhada literária. Nelly foi a última ocupante da Cadeira número 14.

E continua, Lêda:… “E com a humildade dos grandes, com certeza, lá de um dos beirais do Parnaso, ela me abençoará com a generosidade do espírito altaneiro em festiva revoada”.

Movimento 5. – Nada me Concede Maior Prazer do que Antever Mudanças, Principalmente no que se Refere a Grandiosidade das Almas.

Nesta homenagem centenária prestada a Nelly, proposição do Acadêmico Luiz de Aquino, já lhe se pode traçar o perfil humano e literário da genial escritora: Quem sabe imaginar a mulher vibrante, de forte personalidade, olhos acesos para os florescimentos tradicionais e modernos da Literatura. Eu a imagino assim e sempre: Pensamento elevado a Deus, a tirar grandes lições das coisas simples da vida, a saber usar a linguagem no ritmo de todas as esferas, a retirar as pedras atiradas no meio do caminho.

Há muito mais coisas nas entrelinhas do livro ‘Quatro Regionalistas’, de Nelly Alves de Almeida, lançado em 1985, pela Editora da UFG, em que Nelly estuda a obra de Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Élis, Carmo Bernardes, Mário Palmério, onde se encontra o mapeamento caboclo dos sertões de Goiás e Minas Gerais, expressando-se no linguajar daquela gente ronceira, o longo caminho das boiadas e dos boiadeiros, a melancolia dos currais que cercavam os beirais das fazendas. O cheiro das matas, árvores, flores, frutos; a sabedoria de quem, a meu ver, tece, através de muitas imagens reais, seu discurso poético. E aí, nos sentidos e sentimentos dessas obras, vigoram as caatingas, o histórico de gente que habita os cerrados, hoje quase totalmente destruídos. Valho-me, a propósito, dos versos de João Cabral de Melo Neto para traçar o perfil do homem incrustado nos sertões deste imenso Brasil:

“Daí porque o sertanejo fala pouco: / as palavras de pedra ulceram a boca, /e no idioma se fala doloroso;/o natural desse idioma fala à força./ Daí também porque ele fala devagar; tem de pegar as palavras com cuidado,/ confeitá-las na língua, rebuçá-las,/ pois toma tempo todo esse trabalho”.

Movimento 6 – O da Sabedoria, dos Estudos, o Cenário Descritivo dos Personagens que, de Certa Forma, Estão Entre Nós. Pois, é dos Desfalecimentos da Vida que o Escritor Busca sua Realidade, o Crer-se na Engrenagem de Seu Trabalho, que, enfim, são as Verdadeiras Regras do seu Viver.

Nelly pode se aprofundar, em seus ensaios, que estudou Geografia, as variações do linguajar sertanejo, entrou no mundo imaginário e real dos personagens, alicerçada por entrevistas, observações, pelo ajustamento de certas palavras certeiras, no rigor de sua evocação. Criteriosa na elaboração de seus livros, reconhecem-se nela reflexos dos caminhos impostos pela busca incessante da criação literária, seus desdobramentos, os caminhos secretos por onde o escritor pode trafegar com inteira liberdade.

Em “Análises e Conclusões”, 2º Volume, editado pelo CERNE, em 1988, Léo Godoy Otero, na orelha do livro, diz o seguinte: “Análises e Conclusões (estudos Sobre Autores Goianos) é obra de participação da vida cultural de Goiás, tendo também compromissos com a história e as angústias sociais, pois é, na verdade, uma reflexão de todo um contexto, a par de estudos mais atuais da teoria da literatura e da própria literatura em si, com os quais a autora se identifica e evidencia em seu trabalho de fôlego”, José Mendonça Teles, no prefácio, diz o seguinte: “Vivendo, intensamente, a vida interior”, “a de mais batalha, de mais inquietação, de mais ânsia”, como diz Unamuno, ao definir cultura, Nelly Alves de Almeida é uma dessas notáveis mulheres que constroem seu mundo literário na imensidão silenciosa de sua biblioteca”.

Registro De Uma obra, editado pelo próprio Humberto Ludovico, em 1994, Editora Kelps, trás opiniões e comentários de vários escritores da cena cultural de Goiás sobre as atividades literárias de Nelly Alves de Almeida. O livro foi prefaciado por Antenor Nascentes, filólogo, dialectólogo e lexicógrafo.

Humberto Ludovico, na Apresentação da obra, diz o seguinte: “Pensei em reunir, em volume, estas páginas, valiosíssimas opiniões, assinadas por nomes de relevo, sobre o trabalho intelectual de Nelly”.

Dir-se-ia da Goiânia de agora, que a cidade caminha a passos apressados, ao alcance de suas botas largas, concretas, às vezes levada pela ironia das anulações em face de um contemporâneo e violento progresso.

Digo, ainda, em versos, sobre a grande Goiânia:

 

“Emaranhados de fios e cobres, acidade se cobre.

Busca-se a virtude para se colocar nela.

Coisa rara em se falando em virtude, ainda

mais daqueles que se dizem justos. Ajusta-se

a consciência de conformidade com as horas.

Horrorizam-se apenas por um segundo.

Menos, talvez, uma fração de segundos.

Ou nem tanto. Depois, mandam-se os segundos”.

 

Há muito mais para se dizer dos estudos e pesquisas de Nelly Alves de Almeida, do esforço para manifestar-se concretamente, mesmo vendo a vida partir-se aos pedaços, por imposição do destino.

Fui eu seu amigo o suficiente para vê-la, em ternura, dedicação, a afirmar-se em todos os aspectos peculiares de sua vida: Da violência da dor para o florescimento aclareado pela luz da filosofia, poesia, literatura.

Movimento 7. Emergem em Fragmentos os Acertos Aclarados do Coração, da Inteligência da Escritora. O Abrir-se de Portas para Novos Entendimentos. O amor pelos Antigos Dias, As vozes que se juntam, Feito Sementes, na Paisagem Inquieta das Artes.

Assim foi, assim é. Em seu perfil de crítica, ensaísta, filóloga, cronista, poeta, historiadora. Quem sabe, talvez, porque assim ela entendia melhor sua relação com a vida, seus pontos de encontros, sua visão renovada e renovadora de interagir com o mundo. Gostaria, ainda, de interferir na instrumentalização possível da Filosofia, da Espiritualidade, acrescidas ainda do inconfundível sentimento de família, esposa, mãe dedicada, sempre presente.

No registro histórico do livro ‘Memórias Goianienses 1’, organizado por José Mendonça Teles, há uma indagação sobre a Goiânia de Ontem, e a de Hoje. Não se pode negar o pensamento antecipativo e a leveza espiritual de Nelly. Então, ela deu sua resposta sobre Goiânia:’ Vi-a, presenciei-a desde o vazio quase indefinido. E minha grande emoção está em ter tido o privilégio de tê-la visto engatinhando, em assistir o seu abraço com a adolescência, e, agora, em acompanhá-la, já adulta, envolvida na maturidade e consciência de um progresso sempre renovado.

Movimento 8 – O da Poesia. Prouvera aos deuses, meu coração triste, que o Destino tivesse um sentido! Prouvera antes ao Destino que os deuses o tivessem! (Fernando Pessoa).

Segundo Antônio Silveira, “o poeta é um construtor, um criador. Pode espelhar-se nas coisas da natureza, ou em acontecimentos concretos. Quando não, criando a partir de uma ideia imaginária. Seu imaginário nasce de um, ideal que todo ser humano busca.”

Ou então, como diz John Keats:  “Se um pardal vem a minha janela, participo da existência dele, e bico os grãozinhos de areia”…

Essa, talvez, e outras imposições criativas do momento, atravessam os mesmos caminhos poéticos de Nelly Alves de Almeida. O poeta que chamo de ‘emoção’, e que poucos conhecem, recria imagens quase simples do passado, para sair de dentro de si mesma, e assumir a essência poética, mesmo que permeada de profunda tristeza. O, poeta, dona de singular criação rítmica de ternura, beleza, mergulha nas profundezas mais íntimas de seu ser, e trás de lá, a poesia da paixão triste da perda, pelo vazio que persistia, indefinidamente, dentro dela. Assim é o seu:

 

Poema Triste

 

“Hoje,

estou tão triste

que minha tristeza contagiou os pássaros

e eles não cantam mais

na manhã ensolarada…

por que será, meu Deus,

que o pesar inteiro do mundo

eclipsou minha alma,

nevando angústia em meu coração

cristalizando saudade ao redor de mim?

Por que será que estendo,

em súplica, as mãos

e nada recebo

senão esta chuva da angústia

que me inunda a alma inteira de melancolia?

Há vida lá fora

e há angústia aqui dentro.

Uma angústia tão grande, Senhor,

que seu reflexo vaza as paredes do quarto

me adormece a consciência,

o peito,

a carne,

numa alucinação de coisa inatingível

Irremediável,

perdida!

Depois, vai refletir-se nas árvores,

nas ruas,

nas calçadas,

num tom roxo de sofrimento

que tinge de desespero

os albores do dia claro…

e a solenidade da tristeza

que me invade

é tão eloquente

que sua ardência crepita vivamente,

crestando o teto,

as janelas,

o chão

e enche o ambiente

de um peso estranho

estranho e doloroso

como a austeridade da morte!”

 

Este poema triste nos surge como permanente sombra escura caída sobre o pensar da poeta. É o caminho de quase crepúsculo, de versos regulares que, naquele momento, era o entardecer de todo um universo maternal, conteúdo pleno de coisas doloridas, sensações do consciente, que nem o tempo consegue apagar.

Movimento 09. Ainda o da Poesia: Como no dizer de João Cabral de Melo Neto:

 

“Pois nessa memória é que ela, (a poesia)

inesperada, se incorpora:

na presença, coisa, volume,

imediata ao corpo, sólido.

Ou ainda: Ela vai qual se a ralasse

a lixa R da paisagem;

ou qual se um corpo, despida,

varasse a caatinga urtiga.”

 

Era como se as palavras estivessem incorporadas ao corpo da poeta e seus poemas não eram mais do que a extensão dessa névoa, espaço para seus sentimentos. Pensamento/ coisa leve/ que voa não sei para onde/ buscando não sei o quê/ se engolfa em nuvens escuras/ em nuvens cinzentas/ brancas/ e traz pro peito tristonho/ certeza de liberdade/ desejo de alegria/

Tudo se alinha, tudo se move, tudo toma forma: aspectos formais, imagens, o tom baixo de quem é somente sofrimento, as impressões estranhas à sua alma e por onde a alma se arrasta a tentar “prender, ainda citando João Cabral de Melo Neto, todos os temas/ que pode haver no corpo frase.

Então, esse era um tempo de indagações, de descobertas de crimes a se fechar no ritmo alucinado da literatura de Bernardo Élis, sua escritura forte definitiva, marcante em sua subjetividade e posicionamento social.

Quem pode se esquecer de “Ermos e Gerais”, primeiro e marcante livro do grande Bernardo Élis? Quem pode se esquecer dos personagens acentuadamente fortes, tecidos pela contingência fundamental de sua força criativa? Aí estão, vivos e muito bem caracterizados: O Velho Januário, Camélia, Izé de Catirina, Inhola dos Anjos, Quelemente, Rosa, Piano, André Louco, Pai Norato e uma multiplicidade de figuras incorporadas à essencialidade de sua obra. Quem não leu e se encantou com Hugo de Carvalho Ramos, e seu Tropas e Boiadas, lançado em 1917: Rio de Janeiro, Revista dos Tribunais.

Quem não se emocionou com o conto: “Ninho de Periquitos”, narrativa de grande força expressiva, linguagem atada ao mundo externo, mas, também aprofundada nos sentimentos interiores do contista, em que entram como personagens o caboclo, o ninho de periquitos, a cobra. O desfecho, surpreendentemente realista, é algo que tira o leitor de sua cômoda passividade para fazê-lo refletir sobre o que se pode esperar dos bons escritores regionais.

Quem não se lembra de Carmo Bernardes? Regionalista por excelência, com seu longo e primoroso estudo das plantas do cerrado, o linguajar oralizado dos que habitam os grotões sertanejos? Quem não se lembra de “Jângala? Rememoriais?” Pois é, Nelly debruçou-se sobre a obra destas grandes figuras e nos presenteou com a verdade de suas escrituras que “mescla a análise estrutural da obra literária com a busca por uma verdade mais ampla sobre o mundo, no caso regional, revelado no texto”. A autora analisa aspectos linguísticos e estilístico desses escritores. Ainda devemos dizer que cada estudo acompanha um glossário de expressões próprias da literatura regionalista.

Quando a memória recorda desenganos, tampouco esquece a dor que os acompanhou. Assim o dualismo corpo e alma não pode prescindir das influências do corpo sobre a alma” afirma Walter Benjamim.

E então, se diz, dizemos nós, a escritora Nelly Alves de Almeida deixou-nos suas indagações, seus conflitos, suas dúvidas, suas respostas, sobre a vida; despindo-se de sua pele, criando nova estrutura para a escritura de críticas literárias, crônicas, ensaios, poemas. Não se pode esquecer o passado sem comprometer o presente.

Movimento 10. Neste décimo e último movimento, dedico meus versos em homenagem a Nelly Alves de Almeida, talhados junto às vozes adormecidas da memória, às vozes adormecidas no tempo, como se vindas dos lugares, recantos desta cidade que sustenta, indiferente, o destino de seus poetas.

 

O que sinto é que as mães

lembram sofrimento, ao passar em alinhavo suas

preces, quase sempre santas, muitas vezes humanas.

Assim, vejo-a por inteiro no chão escolhido por ela.

E mais a casa, seus moradores, a mistura de cores,

e o Tempo de Ontem, agora mais sentido,

(o fogo incessante da memória),

Que pode alcançar os sentidos

Múltiplos da vida.

Nada foi consumido. Tudo permanece

nas transformações do tempo de agora.

Os gestos filhos, a nudez das palavras,

o haver-se, em duplo, entre corpo e espírito,

a tocar no que de simples, se torna exagero da alma,

Como se nova luz, descesse sobre o silêncio,

Quem sabe, a conspirar algo novo sobrepreço

antigas frases, imagens a entrelaçar memórias

adormecidas no tempo.

 

Assim é Nelly Alves de Almeida,

ao fazer-se em várias, múltiplas,

em corpo, e alma a atirar-se

para o infinito de coisas, a dizer-se

ave móvel, a desenhar obscuro

sol de interna paisagem adormecida

No incessante fogo da memória.

 

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail [email protected])


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