O terceiro homem
Redação DM
Publicado em 7 de março de 2016 às 02:17 | Atualizado há 9 anosTrês pensadores, sinceramente interessados em conhecer a Verdade, a fim de vivê-la e encontrar, assim, a libertação da dor e das sombras interiores, combinaram entre si e partiram em direção à mística e lendária Índia dos grandes sábios.
Iam ao encontro do inesquecível filósofo e apóstolo do bem — Rabindranath Tagore para se tornarem discípulos dele e, na fonte daquela água lustral do espírito, dessedentarem suas almas sequiosas de Luz, Amor e Sabedoria.
Chegaram finalmente às magníficas paragens daquele país exótico, berço das excelsas verdades do espírito.
Foram ter com o sábio e generoso filósofo das imensas claridades do Bem.
Não o encontraram num gabinete confortável e de difícil acesso. Nem nos meios da intelectualidade presunçosa. Não se encontrava também de permeio aos sábios repletos de bazófia e teorias vesgas, porquanto improdutivas e acomodadas. Não estavam nem mesmo no palácio do saber, aureolado de glória e pretensa imortalidade, onde a empáfia dos “ternos” sobressaia mais do que os seus pensamentos, pois só são realmente grandes aqueles que, na suntuosidade dos seus talentos espirituais, sabem se identificar com a pequenez dos anônimos.
Não se achava finalmente nas praças públicas ou nos templos, nos palácios ou de porta em porta nos tugúrios, levando o conselho que ninguém pediu, porque — troça a Vox Populi — “se conselho fosse do agrado de todos, ninguém o daria de graça”…
Não. Ele não estava nessas circunstancias extremistas, próprias àqueles que, desconfiando subjetivamente da fragilidade dos seus ideais, forçam a sua aceitação precipitada, como se pretendessem pregar, nas paredes do cérebro alheio, a golpes de martelo, os lembretes de sua vã e pobre filosofia.
Onde estaria então Rabindranath?
E se puseram a perguntar aos passantes. Até que desfigurada mulher lhes respondeu:
— Ah, ele está na Vila dos Atormentados…
— E onde fica esse lugar?
— Os senhores não sabem? Sigam por esta rua. Onde terminar a fileira das luminárias, começam os domínios das trevas e das dores… Lá os senhores o encontrarão à semelhança de uma chama ardente numa noite enregelante…
E para o local indicado seguiram os homens, simplesmente três filósofos perdidos no caminho, três faróis de luzes apagadas…
Foram encontra-lo envolvendo um recém-nato que o frio da noite molestava, enquanto mulheres piedosas acudiam a mãe que padecia os estorvos de uma maternidade acidentada.
Depois de tudo, ele juntou-se a conhecido bando de marginais. Todos o recebiam com aquela efusão espontânea que, às vezes, não encontramos nem mesmo na intimidade de alguns amigos e parentes. E quem o visse ali, no aconchego daqueles malfeitores de faces rudes, o suporia, certamente, um deles, senão o líder dos chacais.
Os três cavalheiros não se aproximaram, por enquanto. Preferiram a precaução. Podiam estar equivocados, não é mesmo, senhores? Afinal Rabindranath, àquelas horas tardias da noite, bem podia estar descansando o corpo fatigado das labutas diárias, e com o espírito devaneando na esteira luminosa das estrelas, reunindo-se aos astros rutilantes do firmamento, como certamente acontece com as almas dos santos que os homens fabricam, de acordo com as suas deduções descuidadas, que nos falam de anjos indolentes e de gozos celestes, num clima de egoísmo e improdutividade.
Os três senhores cuidaram de certificar-se da identidade daquele homem e abordaram cada um deles, a pessoas diferentes que estavam por ali, obtendo, ao final, a mesma resposta:
— É Rabindranath, o senhor não sabe?
Puseram-se a examinar o estranho ancião de cabelos e barbas alvinitentes, e o faziam resguardados na discrição e na distância que os separava dele.
O apóstolo do Bem conversava longamente com os rebeldes sempre irrequietos e de semblantes ferozes. Caminhou depois até à companhia de algumas mulheres de rostos empalecidos pela brisa das noites que conheceram. Ao lado delas, permaneceu por mais uma hora, falando de coisas que eles — não podiam escutar ou definir. Até que um homem triste, trôpego, de vestes molambentas, de semblante preocupado, o vem chamar, saindo os dois em seguida — o pobre homem claudicava, doente — e, ao passarem próximos aos três observadores, estes escutaram uma frase dorida sendo pronunciada pelo amigo de Rabindranath, enquanto os dois sumiam nas trevas da noite fria: “Estou com medo, Mestre… Será que minha filha viverá?”
E os três candidatos ao Conhecimento Maior, não mais vendo os dois companheiros, ficaram em silêncio por um instante, parece que a meditarem e, por fim, após se entreolharem, conversaram, entre desapontados e confusos:
— Não vejo nada de extraordinário nesse homem! Disse o primeiro. É um extravagante. Nada tenho a aprender com ele. Penso que é melhor ir pra casa, depois de conhecer um pouco este país estranho…
— Eu também farei o mesmo. Disse o segundo.
— O Terceiro homem, sendo mais necessitado que os primeiros, repleto de angústias e sofrimentos profundos, não queria desanimar tão cedo da pesquisa. Conhecedor das suas deficiências morais carecia, mais do que os outros, do remédio mais forte para a cura das chagas do seu espírito e, não querendo abandonar a trilha redentora, achou melhor permanecer por ali, até que alguma circunstância lhe favorecesse, provocando um encontro seu com Rabindranath.
E enquanto aguardava essa possível casualidade, pôs a caminhar pelas estreitas ruas da Vila dos Atormentados…
A cada passo, deparava com a fila interminável dos necessitados. Comovido diante de tanta dor flagelando homens, mulheres, jovens e crianças, nem percebia o pranto a rolar abundantemente dos olhos, pois apressava em socorrer daqui e amparar acolá, desconhecendo cansaço e perdendo a noção do tempo, e quando ergueu a fronte para enxugar o suor, é que percebeu as claridades do dia nas barras dos céus.
O que mais o aturdia, inspirando-o a trabalhar dias, meses e anos seguidos, foi a multidão das crianças raquíticas e doentes, que choravam de fome e frio, ciliciadas pela ignorância de pobres mães que o sofrimento cretinizou. Aqueles pequenos seres definhados e de olhos tristes, desprotegidos e seminus, eram, agora, a razão que ele tinha para viver, e queria viver com tamanha intensidade para socorrê-los, que os seus dois amigos tiveram que voltar à pátria de onde vieram sem ele. “Coitado”… — “pensavam os companheiros — Veio buscar o segredo da felicidade e as luzes da sabedoria, mas ficou acorrentado à miséria e à loucura”…
Quando, por fim, depois de um lustro de atividades junto aos órfãos e atormentados, encontrou o portentoso Rabindranath, nada mais tinha a perguntar-lhe, porque, afinal, se lhe perguntasse alguma coisa, não lhe compreenderia a resposta, tamanha era a insignificância do seu vasto conhecimento, diante de tudo o que começava a aprender, naquele mister sublime de doar-se totalmente aos outros, e por compreender que o estafeta do Bem estava muito alto em relação a ele, que veio de muito baixo. E não queria mais nada de Rabindranath, porque não podia alcança-lo, por ter vindo de muito longe.
Só o exemplo do pensador cristão, falou de maravilhas imensas que o terceiro homem, aos poucos, foi compreendendo.
É bem verdade que as palavras fulgentes expressam muito pouco, em relação ao exemplo que comprova tudo e nos fala de muito mais.
E o terceiro homem, no afã de amar e servir, executando sempre a caridade atuante, pôde, finalmente, encontrar a si mesmo, depois de se esquecer — na missão de lembrar-se dos outros. Liberto então do egoísmo, foi feliz para sempre…
Meus amigos: dos três homens da narrativa, eu sou como o último deles…
Caminhando pela vida eu me esbarrei com a legião dos necessitados, e me sintonizei com eles pelos liames do sofrimento. Mas pude ser muito feliz ao ser-lhes útil nalguma coisa, malgrado as minhas infinitas imperfeições. De modo que eu não pude caminhar mais depressa, ombreando com os escritores de Anápolis e Goiânia, que podem lhes oferecer livros mil vezes melhores do que os meus. “Mas — neste instante começo a parafrasear Humberto de Campos — percorri maior distancia do que eles, pois fiz um caminho mais áspero, sem água e sem pão, — assim como os meus companheiros de infortúnio — e estou cansado, porque vim de mais longe”. Nunca, senhores, os meus pobres trabalhos alcançarão o nível cultural dos escritores anapolinos e goianienses, “porque eu vim de muito baixo…”
Mas eu os entrego com aquela tranquilidade do menino que recebera a incumbência de trazer, aos senhores adultos, um recado muito importante, e que está feliz, porque o faz quase nas pontas dos pés, olhando para cima…
(Iron Junqueira é escritor)