Brasil

Psiquiatra de adolescentes/psiquiatra criminal tem visão crítica sobre maioridade penal

Redação DM

Publicado em 12 de abril de 2015 às 00:00 | Atualizado há 10 anos

Marcelo Caixeta  Especial para  Opiniãopública

Recebi a seguinte correspondência solicitando informações sobre o assunto:

“Olá dr Marcelo! Sou estudante de Medicina, atualmente no décimo período da Universidade de Y. No entanto, meu assunto não é especificamente sobre Medicina (ou o é ?).

Como sei que o sr. é também psiquiatria infantil, gostaria de lhe perguntar sobre a questão da maioridade penal:

  1. Especificamente, 16 anos já há maturidade psicológica para discernir entre certo/errado? Ou ocorre mais cedo?

Sou a favor da redução, mas muitos esquerdistas argumentam que essas “crianças” não tem maturidade para lidar com o sistema carcerário, especialmente o nosso. Como não tenho tanto conhecimento científico sobre tal assunto, me abstenho de comentar esse ponto.

Desde já agradeço”

Eu digo: Caro amigo X, vou responder a questão não apenas como psiquiatra de adolescentes mas também como psiquiatra forense (criminal). Cito uma estatística do psiquiatra forense e promotor de Justiça José Taborda que, em prisões brasileiras, encontrou mais de 80% de doentes mentais (uma mistura enorme  de hiperativos, bipolares, lesionados cerebrais, deficientes mentais, psicóticos, epilépticos, etc ). Ou seja, na verdade, as prisões brasileiras prendem doentes mentais. Os verdadeiros criminosos não estão lá. Estão dirigindo empresas, estão dirigindo o país, estão dirigindo o Congresso. Criminosos de verdade não são doentes, não “colocam o pé na peia”, são espertíssimos, inteligentíssimos. Os criminosos doentes até são assunto de Medicina, os “criminosos normais” são assunto do Direito. Mas, paradoxalmente, em nosso país, o Direito se ocupa dos doentes e parece proteger os normais. Poucos são descobertos, muito poucos “intimados”, pouquíssimos punidos. Os “normais” podem “pagar por sua liberdade” e por sua defesa. Aos doentes , sem assistência psiquiátrica, só lhes sobra serem “assistidos” pela Justiça. A Justiça e todo seu aparato legislativo-estatal-policial-normativo, seus monarcas, seus altos cargos,  altos defensores e acusadores, altos salários, seus palácios,  sua liturgia, seus rituais, precisa apropriar-se da doença mental, é praticamente sua justificativa, sua razão de ser; afinal é disto que o “aparato Estatal” vive e sobrevive. Para isto, o médico e a Medicina precisam ser alijados ( são chamados , como a Geni da música, só nos bastidores, e para lavar a roupa suja quando o caldo entorna, p.ex., criminoso com surto, quebrando, convulsionando,  agredindo , tentando suicídio dentro da prisão, etc); e esta tarefa de “esconder o real problema médico” é tão eficiente que até você, caro amigo, não sabe se o assunto é pertinente à Medicina ou não. Nem os médicos sabem do que é pertinente a sua profissão. Prova concreta disto é que nenhum psiquiatra de adolescentes foi chamado para discutir a maioridade penal. Chamam todos os psicólogos, sociólogos, juízes, promotores, antropólogos, até o Corpo de Bombeiros e o Grupo de Escoteiros; o problema médico-psiquiátrico, no entanto, este tem de ser escondido. Caro amigo, vá a um hospital psiquiátrico onde haja adolescentes ricos internados : é a mesma população que está nas cadeias. Não muda o quadro, só muda o dinheiro. Em hospitais, os psiquiatras de adolescentes lidam com  garotos que batem, quebram, matam, estupram, abusam de drogas, etc. Em psiquiatria são diagnosticados como tendo : distúrbio de oposição desafiante, transtorno de conduta, podem evoluir para personalidade antissocial, são bipolares, hiperativos, depressivos, ansiosos, etc. Se têm dinheiro vão para o hospital, se não têm , vão para o sistema jurídico-policial, dando também dinheiro para muita gente. A sociedade tem raiva deles, o que é compreensível, até eu tenho, e tenho de fazer das tripas o coração para colocar minha visão profissional científica acima do ódio afetivo que tenho por eles. Este ódio que a sociedade tem por eles é um bom combustível para turbinar ainda mais a opinião de que devem estar no sistema jurídico-policial-carcerário, serem presos, punidos. Este sistema jurídico-policial-punitivo-reclusivo é muito bom para fortalecer o Estado e todos os funcionários que se alimentam dele.  É também importante, para fortalecer o Estado ( coisa que a esquerda gosta ), a opinião de que isto é um problema “social”, que só vai ser resolvido com “políticas públicas”, “políticas sócio-econômicas”, “mais recursos para isto, para aquilo”, “mais psicólogos nas escolas” ( maior  reivindicação dos professores brasileiros, mostra uma pesquisa ) , “mais juízes, promotores, da infância, mais Conselhos Tutelares”, etc.  Neste ponto a direita ajuda a fortalecer o Estado da esquerda, pois os direitistas querem todo mundo na cadeia, ou de preferência morto.

A visão de que o “problema é social” também agrada muito à sociedade, que , no momento anti-autoridade em que vive (o esquerdismo é fruto disto), quer resolver tudo na base do “amor”. Só que amor sem disciplina não resolve, e, eliminando a autoridade (a autoridade do pai, do homem, de Deus, do patrão, da ocupação, do trabalho, da responsabilidade, etc ) , a Sociedade fica num beco sem saída, vira  vítima dos “adolescentes psicopatas normais” ( aqueles que não tem doença psiquiátrica )  e mais ainda dos que as têm , que são aqueles doentes psiquiátricos cuja doença foi majorada pelos fatores psicossociais apontados acima ( falta de pai, de autoridade, de ocupação, responsabilização, estrutura familiar-religiosa, etc ).

Para mim, como psiquiatra infantil e de adolescentes, a “maioridade penal” começa com um ano de idade . Se uma criança ou um adolescente estão prejudicando a quem os ama, estão prejudicando a si mesmos, isto, para mim é caso que tem de ser avaliado, e eventualmente, tratado, psiquiatricamente. Quantos tratamentos bem-feitos de hiperativos na infância poderiam ter impedido os crimes, drogas, Aids, homicídios, na vida adulta ? Tenho certeza de que milhões. Estes dias atendi um garotinho de sete anos de idade, hiperativo, bipolar, disfuncionado  cerebral , que abusou sexualmente da irmãzinha de 6 meses, matou-a com marteladas na cabeça e depois jogou o corpo fora. Isto é “crime”? Teria de ser “punido” ? Eu sei que é um monstro, sei que dá vontade de “matar” uma aberração destas, mas mesmo a meu contra-gosto, tenho de concluir que é um doente, precisa de tratamento. Isto não quer dizer necessariamente que tenha de estar solto nas ruas, que tenha de conviver normalmente com a sociedade. Pelo contrário, precisaria de hospitalização psiquiátrica, por longos períodos, eventualmente para a vida toda,  mas isto é uma coisa que a própria sociedade aboliu ( os chamados pejorativamente de  “manicômios judiciários” ). Foram abolidos tanto pela “direita” (“problema de crime é com juiz, polícia, cadeia, Estado”) , quanto pela esquerda (“não podemos trancafiar doentes, crianças , jovens, submetê-los à autoridade dos “truculentos machões, os poderosos psiquiatrões”). Doenças psiquiátricas na infância e adolescência sempre existiram, mas agora estão explodindo, estão se tornando muito sintomáticas e graves justamente por causa dos fatores sócio-políticos que eu citei acima, que posso resumir como a “abolição de todo tipo de autoridade”, inclusive da autoridade moral.

O excesso de criminalidade é o preço  que a sociedade paga por sua libertinagem, por sua “libertação de todo tipo de autoridade”. Esta libertação, por sua vez, é algo que foi necessário, não poderíamos mais, enquanto sociedade, sermos eternas vítimas dos machões, dos Hitlers, dos Stalins, dos homens truculentos, puteiros, bêbados, vagabundos,  que chegam em casa e batem nas esposas, filhos, etc. O problema é que, ao abolirmos “todo tipo de autoridade”, nós abolimos também a “boa autoridade”, aquela autoridade que tem poder com base em seu exemplo, seu trabalho, sua dedicação, sua renúncia, sua moral. A Sociedade ainda não acordou para isto, está dormindo, está se auto-iludindo à caça de “pôneis-cor-de-rosa”. Enquanto a sociedade não deslocar o verdadeiro debate para estes problemas sociais, familiares, morais, nenhuma medida irá resolver nada em termos de criminalidade, podem botar o tanto que for de “psicólogos nas escolas, policiais nas ruas, juízes nas varas, presos nas celas”, que não resolverá nada.

Agora, voltando à questão original, vou reformulá-la adequadamente para: “com qual idade um adolescente tem capacidade cognitiva para praticar um “crime normal”, ou seja, um crime onde ele “não se prejudique diretamente ou aos que ama”, um crime que vise algum benefício não-imediato,  um crime  planejado, frio, “esperto” ? Já por volta dos 13-14 anos seguramente  o adolescente tem capacidade lógica que permite esta avaliação, permite este entendimento e permite uma capacidade  volitiva ( vontade ) para determinar-se de acordo com este entendimento, inclusive inibindo , por meio da vontade, da lógica, eventuais impulsos criminais. Antes desta idade, mesmo que o adolescente seja inteligente, as forças pulsionais, as forças instintivas, podem ter uma força muito grande, superior à deliberação lógica (isto acontece sobretudo em famílias disfuncionais, onde , sem amor + disciplina adequados, os instintos não têm como ser adequadamente bloqueados). Crianças com um bom temperamento (ou seja, uma boa biologia, ou seja, sem grandes instintos ou pulsões) e com  uma família boa (que dá amor e disciplina) já tem condições de fazer “escolhas morais” com 7 anos de idade, que é uma idade onde a criança já começa dominar os próprios pensamentos e atividade mental (é a fase denominada de “operatória”, por J. Piaget). Nesta idade, ela já sabe o que é “certo e errado” e já consegue dominar impulsos de acordo com este entendimento. Crianças com temperamento adequado, mas famílias disfuncionais, terão dificuldade para controlar estes impulsos até os 13-14 anos, quando uma lógica mais possante os capacita a ver o futuro, a pesar consequências, buscar alternativas .

Como  pode ver, caro amigo, o assunto é muito complexo e, ao meu ver, atividades criminais em crianças e adolescentes, como já existe em países desenvolvidos, p.ex., Finlândia, deveriam passar , antes de entrarem no sistema judicial, por criteriosa avaliação por serviço de psiquiatria forense infanto-juvenil.  Só uma avaliação criteriosa, especializada, científica, profunda, por parte de um médico especialista é capaz de determinar se é um “crime comum, normal”, ou um “crime patológico”. Só esta avaliação é capaz de definir se é um crime por “excesso de impulsos”, “por falta de lógica ou de vontade suficiente”,  problemas de depressão, ansiedade, exaltação, etc. Só esta avaliação profunda é capaz de delimitar quais recursos o indivíduo tinha à sua disposição naquele momento para julgar, deliberar, deter ou atuar o desejo criminal.

 

(Marcelo Caixeta, médico, especialista em Psiquiatria do adolescente pela Universidade de Paris XI e em psiquiatria criminal (forense) pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Escreve às terças, sextas e aos domingos)

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