Brasil

Quando a falta ou não de um sinal gráfico altera a compreensão do que se escreve

Redação DM

Publicado em 10 de agosto de 2015 às 22:08 | Atualizado há 10 anos

Como a ausência ou presença de um sinalzinho gráfico, de um penduricalho gramatical desses aí, um acentinho qualquer de nada, muda tudo, muda o conceito, a reputação e até o destino das pessoas. Espia só: o substantivo “ralé” sem o sinal gráfico vira o verbo “rale”; o nosso rei “Pelé”, sem ele, vira algo comum (imagine!) como a nossa “pele”; o “Irã”, dos aiatolás, sem til, se transforma fatalmente na “ira” dos próprios aiatolás; a substituição do til em  “lã” pelo agudo, vai resultar em “lá”; o mesmo vai se dar com “cã” e “cá”.

O que complica mais é quando a mudança da vírgula altera marcadamente a compreensão daquilo que se diz no escrito. Ela é a maior causadora de transtornos na redação. Uma vírgula mal assentada, prezados amigos, pode acabar com o mundo. Cuidado com ela! A gente cá vai encontrar diversos casos nos websites.

Há, a respeito, as frases de duplo sentido, como esta: “Se o homem soubesse o valor que tem a mulher andaria “de quatro” à sua procura”. As feministas certamente poriam a vírgula depois de “mulher”, hipótese em que é a mulher quem decisivamente tem valor; ao passo que os machistas, depois de “tem”. Cada um virgula a frase aí conforme a sua ideologia de sexo.

“Matar o rei não é crime.” Se a gente pusesse a vírgula após “não”, como aqui, matar o rei passa a ser crime, devidamente tipificado no Código Penal. Mas se for caso de não ter vírgula alguma na frase inteira, matar o rei passa a ser um gesto tão inocente quanto tomar um sorvete, sendo até uma necessidade pública indeclinável, em que todos deviam matar seu rei.

“Maria estuda todos os capítulos para a avaliação.” Ora, se a gente pusesse a vírgula depois de “Maria”, ela ainda vai estudar ou não os capítulos, pois a enunciação aí representa um chamamento, uma invocação direcionada a “Maria”, que, com a vírgula, se converte em vocativo, pra que “Maria” estude os tais capítulos, se não quiser ser reprovada. Se a hipótese é pra não colocar vírgula nenhuma, “Maria” já está estudando e certamente tirará boa nota na avaliação.

A vírgula pode ser uma pausa… ou não. Veja: “Não, espere”; ou: “Não espere”; a vírgula pode roubar ou amoitar o dinheiro da gente: 23,4; ou 2,34; pode criar heróis: “Isso só, ele resolve”; ou “Isso só ele resolve”; pode ser ou não a solução: “Vamos perder, nada foi resolvido”; ou “Vamos perder nada, foi resolvido”; a vírgula muda uma opinião: “Não queremos saber”; ou “Não, queremos saber”; pode condenar ou absolver: “Este aí não é inocente”; ou “Este aí não, é inocente”; pode ser clemente ou inclemente com a gente: “Não, tenha clemência!”; ou “Não tenha clemência!”; pode significar ou não estar a gente só, embora acompanhado, como bem expressa poema que a gente compôs especialmente para o Diário da Manhã, “Poema de Amor Com ou Sem Vírgula”. Note só que a compreensão dele muda essencialmente em virtude da ausência ou presença do sinal gráfico. Na primeira estrofe, “vivo só te beijando,/ te abraçando,/ te amando,/ enfim: vivo o tempo todo só ao teu lado”//, melhor, não faço outra coisa senão te amar, abraçar e beijar. Já na segunda estrofe, “vivo só, te beijando,/ te abraçando,/ te amando,/ enfim, vivo o tempo todo só, ao teu lado”, quer dizer, embora  te amando, abraçando, beijando, me sinto irremadiavelmente na solidão, naquela solidão a dois. A gente conclui, ao final do poema, que, “viver só ou não, ao teu lado, é uma simples questão de vírgula”. De fato, a vírgula altera totalmente a realidade que o texto retrata.

Se bem que a ausência de um mero acento agudo pode igualmente alterar a realidade. A gente tem, a propósito, um causo folclórico pra contar. Aí vai:

Era uma vez um tal de João, filho de Juca e Margarida “Doído”, que de doridos não tinham eles mesmo nada, antes eram eles uma gente feliz e falta de dores aquela gente lá.

Os Doído (apelido que mudou pra nome de família) viviam numa vila não muito distante daqui. Contraíram tal apelido porque se doíam exageradamente por qualquer coisa triste. E assim ficaram conhecidos na vila.

Vai nasceu o menino João. No dia mágico de São João. Um mimo de criança! Que passou a ser o xodó de casa.

Aí o pai foi logo pensando “em registrar a criança como João Doído”. Juca Doído arreou o cavalo, pela manhã, e saiu de casa apressadinho a cavalgar no rumo da vila. Logo deu de cara com o registro público. Aí, ai!, o escrivão dali, que já era velho e quase cego e surdo, mal se aguentando nas pernas, esqueceu de por o acento em “Doído”. E temos aí a razão por que o recém-nascido passou depois a ser largamente chamado, naquela região de buritizeiros sem-fim,? era buriti que não acabava mais não,? de “Doido”; “João Doido”, que de maluco ou doido não tinha aquele desinfeliz lá nadinha mesmo. Nem no andado. Nem na sombra. Antes, era um espírito lúcido e muito atinado. Ah, desgraçado do velho escrivão daquela vila! Veja só o que ele fez, leitores do Diário da Manhã. Veja só como o esquecimento do acento agudo comprometeu a sanidade mental do pobre do João. Melhor fosse “Doído”. Ai! Essa aí doeu de verdade, senhor escrivão. Arre!

 

(Pedro Nolasco de Araujo, bacharel em Direito, especialista em Direito Constitucional, mestre em Gestão do Patrimônio Cultural e membro da Associação Goiana de Imprensa)


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