Brasil

Uma biografia política de Caio Prado Júnior

Redação DM

Publicado em 1 de junho de 2016 às 03:40 | Atualizado há 9 anos

A imperiosa necessidade de ler, tentando abranger e dominar o assunto, induziu-me a perceber que precisava ler sistematicamente o livro, a biografia do autor e pelo menos maior parte do que escreveram deles e sobre eles, se possível publicando o resultado das leituras, que devem seguir as boas orientações e regras dos livros de metodologia científica. Acredito ter feito isto, quando me preparava, num período superior a dez anos, para escrever e publicar Racismo à Brasileira: raízes históricas (1985), ora em 1ª reimpressão da 4ª edição, o mesmo ocorrendo nesta minha trajetória intelectual de várias décadas.

Apesar da práxis continuada e da idade beirando os 80 anos, quando iniciaria a 4ª idade, continuo tendo minhas dúvidas, principalmente quando escrevo imaginando ser intérprete, oxalá dialético do meu país e cá da terra onde moro, a estremecida Mineiros que, assim como Poço da Pedra, em Casa Nova, Bahia, é o meu berço solitário onde, certamente ouso encontrar a Perfeição e a Beleza, imaginando testemunhar o meu tempo na busca da Verdade. Creio ter sido assim que acabei de ler Caio Prado Júnior: Uma Biografia Política (2016), do historiador Luiz Bernardo Pericás, ilustre professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP), decerto a biografia mais completa da vida, obra e temerária trajetória política do grande historiador marxista brasileiro, sem dúvida um dos mais notáveis intérpretes da história do Brasil, no deciframento de nossa sociedade.

Entre os documentos consultados e coligidos para a elaboração dessa importante obra, destacam-se dezenas de cartas de Caio Prado Júnior, assim como as inúmeras que recebeu, inclusive internacionais, tentando cumprir o seu difícil, temerário, por vezes emblemático papel de intelectual marxista, comunista, num país que desde a colônia foi estruturado para satisfazer necessidades externas, viver de contrastes e “faz-de-conta”. Ser visivelmente anticomunista já a partir da segunda e terceira décadas do século XX, onde as forças contrárias às fortes convicções políticas da esquerda de CPJ, encontravam-se na própria família oligárquica, os tradicionais Caio Prado de São Paulo (com a qual rompeu), sendo de se pensar o quanto sofreu ao perceber que vivia num país de fachada, pretendendo explicá-lo, o que de fato conseguiu, sobremodo, a partir da publicação do convincente livro: Formação do Brasil Contemporâneo (1942), com convicções ratificadas nos que se seguiram, como A Revolução Brasileira (1966), quando criticou severamente os nossos equívocos, ironicamente dando-lhe o merecido prêmio Intelectual do Ano, não se podendo esquecer o que publicou em 1933, Evolução Política do Brasil, já mostrando o seu indiscutível talento.

Segundo o biógrafo citado, CPJ historiador é indissociável do CPJ militante político. Em outras palavras, como informa texto da “orelha” direita, “…a opção que o jovem de família aristocrática tomou, decepcionado com os rumos da Revolução de 1930, de aderir ao Partido Comunista do Brasil (PCB) norteou o restante de sua vida e obra, sendo significativamente esse o momento que Pericás escolheu para abrir o capítulo 1 de seu livro, sugerindo que o que veio antes foi para Caio uma espécie de prólogo. A partir daí, já como marxista, buscou unir teoria e prática”, citando os exemplos da Editora Brasiliense e da Revista Brasiliense, dentre outros.

Intelectual admirável, passou grande parte da vida, senão na clandestinidade, no exílio e na cadeia, por pensar diferente, num país “muito atrasado”, como chegou a dizer e ainda se encontra, por estranho que pareça, mostrando odiosos preconceitos contra a esquerda e seus partidos políticos. Lutas, “derrotas”, esquisitas angústias fazem parte desse singular personagem, agora melhor investigado, desvendado num consistente estudo fundado em ampla bibliografia e argutas fontes, inclusive inéditas, emergindo assim por inteiro em tudo o que se relacionou na política e brigas intelectuais. É de se imaginar o quanto deve ter sofrido após entrar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), assistindo ao afastamento da própria família, da qual foi também obrigado a afastar-se, recolher-se no mais profundo de sua persuasão crítica, dialética, como se pudesse coonestar ou disfarçar o que imaginava, escrevia e punha em prática, como competente e invejável historiador e pensador, que lutou uma vida inteira para que o Brasil “superasse seu velho complexo de inferioridade”, o que não é de “vira lata”, como se vem apregoando, descuidadamente, cometendo até racismo ecológico.

Se não bastasse o doloroso afastamento da família, a forte discriminação diferencial contra CPJ chegou a ponto de ter uma filha apedrejada na rua, cruzes em chamas eram atiradas no jardim de sua casa, nunca o deixaram lecionar na USP, teve a gráfica incendiada, a militância no PCB tampouco era aprazível: os dirigentes não o consideravam um “bom marxista” e só o visitavam para pedir dinheiro, informando texto de Maurício Puls, publicado nos mais importantes jornais, que embora CPJ fosse defensor intransigente da liberdade de pensamento, “suas obras eram vistas com desconfiança, Luis Carlos Prestes disse que Formação do Brasil Contemporâneo era anticientífica, Dialética do Conhecimento foi condenada pelo Comitê Central e sua Revista Brasiliense estigmatizada como “nacional-reformista”. O PCB nunca aceitou sua tese de que o Brasil não era “feudal” e que, portanto, a estratégia política do partido não fazia sentido, acrescentando que o diagnóstico de CPJ só seria plenamente compreendido, diante dos inegáveis desajustes em que se interpretava a história do Brasil, depois que a aposta do PCB “numa burguesia nacional progressista” levou ao desastre de 1964.

A história é implacável, inexorável, notando-se que já em 1999, um júri de intelectuais consultados pela Folha de S. Paulo incluiu o livro Formação do Brasil Contemporâneo entre os cinco principais ensaios de interpretação do Brasil, ao lado de clássicos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Euclides da Cunha e Antônio Candido. De todo modo, são muitos os admiradores e defensores da obra e pensamento de Caio Prado Júnior, com realce a partir de Formação do Brasil Contemporâneo. Celso Furtado disse certa vez que Caio Prado não teve a projeção internacional que merecia. Deveria ter passado mais tempo na Europa. Ao certo, seu nome nunca foi ignorado. Suas obras estão traduzidas para o inglês, espanhol, italiano e russo. Fernand Braudel resenhou Evolução Política do Brasil para os Annales, em 1948. Arnold Toynbee o visitou no Brasil, em 1966. Ao ser preso pela ditadura militar, em 1970, os historiadores Stanley Stein, Thomas Skidmore, Warren Dean, Richard Morse e Joseph Love se mobilizaram nos EUA para tentar libertá-lo. O anacronismo em que vive o país, com ênfase em âmbito político, pelo o que conhecemos da obra e autor referenciados, realça bem os Caio Prado Júnior que ainda precisamos na explicação desse horrível atraso nacional.

 

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM – [email protected])


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia