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COTIDIANO

“Não existe luta sem sangue”

DM acompanhou o dia a dia de acampamentos espalhados nas rodovias. Movimento reúne atributos de coragem e honra e não revela intimidação com chegada do Exército

Eric Bezerra de Carvalho, 35, na divisa de Goiás com o Distrito Federal, na BR 060, levantou a mão e fez um sinal. Em segundos, um grupo se formou para organizar um protesto. O relógio marcava 8h25 de sexta-feira, 25. De­zenas de caminhoneiros se organi­zavam diante do frio de 9 °C da re­gião do Entorno do DF.

Os que ainda estavam ao lado de fogueiras largaram o posto e se re­uniram para falar. Eric se apresen­tou como líder, mas pediu educa­damente a palavra. Disse com voz miúda e baixa que o Brasil vai parar para poder respeitar quem traba­lha pelo desenvolvimento e reafir­mou a força que a mobilização tem.

“Nós estamos aqui reivindican­do uma causa que não é apenas dos transportadores. Mas de todos nós brasileiros. Temos uma for­ça muito grande. E nós tomamos consciência disso. Então agora va­mos mostrar o que pensamos. Sa­bemos que é a malha viária que faz o Brasil crescer e acontecer. Gos­taria que a população entendesse: não existe luta sem sangue. Pes­soal, a sociedade dos caminhões brasileiros está pedindo socorro. Tenham paciência com a gente”, disse ao Diário da Manhã.

Durante todo o dia de sexta­-feira e sábado os manifestantes se reuniram. A reportagem do DM passou por diversas vias de Goiás, Distrito Federal e Bahia e encon­trou um movimento sólido. Social­mente, eles se integram em grupos de dez a 20 caminhoneiros. Reali­zam churrascos, discutem futebol, mandam fotos para os familiares e interagem com quem atravessa pelas barricadas.

Quem passa de madrugada pelos acampamentos observa os movimentos de vigília ao redor das fogueiras. A quietude esconde ner­vosismo. Afinal, o que fazer quando o Exército chegar? O Governo Fede­ral publicou ontem um decreto que permite o uso das Forças Armadas para desobstruir as rodovias.

Quem cruza de carro buzina e grita em apoio. “Vocês são heróii­iiiiiiis!!!!!”, diz uma loira que passa lentamente na direção para Luziâ­nia. “Tá vendo? Isso arrepia a gen­te. Deixa todo mundo feliz, pois sabemos que o Brasil está do nos­so lado”, diz Cristiano Pereira, da Bahia, que diz não temer o Exér­cito. “Uai, mas nós queremos mes­mo é a intervenção militar!”.

O que se vê ali é um grande des­contentamento com as propostas do governo, que apressadamen­te anunciou o fim da greve. Logo pela manhã de sexta eles fizeram questão de reafirmar que Gover­no e imprensa “mentiram” quan­to ao fim da paralisação.

SEM TEMOR

Juninho Canhão, um motoris­ta de São Paulo que segue para a Bahia, disse para a reportagem que “não teme Justiça nem governo”. E que não receia nada, pois tem di­reito de parar o caminhão e fazer o que quiser.

O grupo ao redor de Eric deixou claro e em alto bom som: “A greve não acabou!!!”.

“Nóis que mandamos neste País. Nóis que transportamos o pão de cada dia. Sou cidadão. Não sou va­gabundo não. O seu luxo é ‘nóis’ que traz pra você. Nóis todos so­mos ‘caminhão’, todos dependem dele. Você está vendo aí a falta que a gente faz. Começa a olhar ao seu redor, no seu lar. Veja!”, diz Valdson Cordeiro da Silva, de Anápolis.

Sob o dó de peito, o grupo gri­tou uníssono pelo impeachment do presidente Michel Temer (MDB) e reafirmou que um grupo de “pele­gos” teria negociado com o Gover­no Federal e aceitado a trégua de 15 dias. Por fim, o governo teria tenta­do jogar o Exército contra eles.

DIESEL

Ao conversar com os mobiliza­dos, todavia, se percebe que a rede de protestos não discute filigranas do diesel. Inicialmente – de fato – é está a causa da grita, conforme um protestante de Anápolis: “O movi­mento todo é pelo diesel, o com­bustível que movimenta o Brasil. Queremos isso: o fim dos impostos”

Mas muitos outros pontos, como o valor geral dos combustíveis, está em pauta. Ao que se percebe, por trás do reclame do diesel existe uma grande insatisfação com a política. Os caminhoneiros citam nomi­nalmente os políticos que enten­dem ser responsáveis pela crise. Um deles mostra uma lista com endereço e telefone dos agentes políticos. Na lista entram ex-pre­sidentes, ex-governadores e polí­ticos com mandatos.

Um braço forte do movimento pede intervenção militar urgente, pois está cansado de abusos. Ou­tro quer a volta de políticas públicas que contemplam os direitos sociais. A babel ideológica não esconde o que os une: a indignação.

O movimento tem estratégia de sobra para enfrentar a pressão da grande mídia e dos ministros de Mi­chel Temer. Vai continuar nas la­terais das estradas e reunidos – o que não é proibido. Afinal, ninguém pode ser obrigado a trabalhar – ain­da mais em condições injustas

 Camaradagem marca união dos caminhoneiros

A caminho de Posse (GO), em rodovia que segue até a Bahia, um grupo de caminhoneiros fazia um churrasco enquanto discutia os des­dobramentosdamanutençãodagre­ve. A cada cinco carros que passava pela rodovia, que não estava obstruí­da, um deles doava alimentos para os motoristas. Carne, refrigerante, água e cerveja chegavam através de doações para os “heróis brasileiros”.

EXÉRCITO

Antônio Carlos ‘Marmita’, de Mi­nas Gerais, disse ao DM que aguar­da ansioso a chegada do Exército. O agrupamento não tem armas, mas diz que existem estratégias e uma “solução final”. Mas eles se negam a explicar ao DM o que querem dizer com a expressão.

TEMER

Apesar da grande tensão pro­vocada e receio, já que eles acredi­tam que “Michel Temer seja incon­sequente e desequilibrado”, o grupo mantém o foco na sobrevivência. En­tre um churrasco e outro, falam com filhos e acalmam as esposas.

SAUDADES

Um dos caminhoneiros, seu Oswaldão, chegou a chorar: “Mi­nha vida é minha esposa. Sempre fiquei só dez dias sem ver ela. Ago­ra que bati os dez dias: tô nos 12 com muita vontade de beijar ela, de abraçar ela...”

Minha vida é minha esposa. Sempre fiquei só dez dias sem ver ela. Agora que bati os dez dias: tô nos 12 com muita vontade de beijar ela, de abraçar ela...” Seu Oswaldão, caminhoneiro.

 “Sobram 20%. Se fosse uma empresa já estava falida”

Eric Bezerra, o líder, diz que o que recebe hoje não é suficien­te para sequer manter o trabalho. “Hoje, sou autônomo, minha des­pesa é 80% do frete. Sobram 20% para manutenção e sustento da minha família. E dessa despesa, 70% vai para pagar óleo diesel. Que empresa com 80% de despesa vai dar certo? Não tem como. Pega o lápis. Faz a conta, meu irmão. Por isso não vamos mais nos calar”.

“Não vamos arriar. É agora ou nunca. Sou de São Paulo. Já estou com saudade da minha família, mas agora só quero honrá-la. Vão saber lá na vila, no meu setor, que nós temos coragem e determina­ção. Se você tira tudo, evidente que não sobra nada. Hoje nós paga­mos caro pra comer, pra rodar nas estradas”, desabafa Nicola Neto.

Edson Chagas, de Goiânia, re­clama do preço do uso de banhei­ro. “Rapaz, é tanta indignação! Nós pagamos R$ 5 para urinar, para usar o banheiro. Tem um região no Pará que é mais cara ainda. Um verdadeiro absurdo! E o frete é muito barato. Não vamos aban­donar as estradas até sentir que esse governo ladrão vai parar de nos matar aos poucos”, diz em tom de completa irresignação.

PROPOSTA

A proposta do Governo Fede­ral foi amplamente rejeitada pelo movimento grevista. Nicola Neto diz que Michel Temer é “traiçoei­ro”: “Ele dá dez agora e amanhã aumenta 20”, diz, em referência à proposta da redução tributária.

A reunião do governo – diz Eric Bezerra – ocorreu com um “sindicato que usa nosso nome”. Para ele, existe claro interesse em reduzir a força do movimento, que pode despertar a consciên­cia dos demais brasileiros. “Nós estamos com o Chorão, da Asso­ciação dos Autônomos. Só que­remos dignidade e respeito. E va­mos continuar por horas e horas, dias e dias”, diz.

O caminhoneiro Jacó Muto­ni, do Paraná, reclama também do Governo de Goiás, que teria um dos ICMS mais caros do País. “Esse Estado e Minas Gerais é uma vergonha: rouba desaver­gonhosamente desse povo todo que está aqui.

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