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COTIDIANO

Estresse e estafa: males da modernidade

O médico psiquiatra Marce­lo Caixeta, autor de vários livros e articulista do DM, está acostumado a enfrentar inú­meras situações complexas em seu cotidiano. Inúmeros pacientes com esquizofrenia, depressivos, portadores de transtorno bipolar, demências e dependentes quími­cos surgem sempre como desafio para sua farta experiência clínica.

Mas a modernidade pode trazer outras situações – como o estres­se ou uma ‘simples’ “estafa” – que têm o poder de tirar a pessoa do sé­rio, impedindo sua felicidade ou a manutenção da qualidade de vida.

Em conversa com o Diário da Manhã, o médico psiquiatra ca­tegoriza e explica os males da mo­dernidade, com um enorme po­der de síntese e olhar científico vigoroso. Afinal, sua situação fi­nanceira o estressa? Ou melhor: o que é, de fato, o estresse?

O especialista explica os con­ceitos, fala da aplicação incorreta dos termos ou de situações na Jus­tiça para algumas definições e re­vela como a mulher absorve os im­pactos negativos da modernidade.

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA

Diário da Manhã — Doutor Marcelo, o que nós, os leigos, reconhecemos como “estresse” é o mesmo que a Medicina reconhece como tal?

Marcelo Caixeta – Há muitas diferenças, e estas se prestam a con­fusões importantes. Em Medici­na, o termo “estresse” surgiu com o médico fisiologista americano Sel­ye, que criou o termo para indicar uma série de respostas biológicas do organismo, quando agredido por determinadas situações físi­cas. Então, em Medicina, fala-se em situações biológicas que o lei­go não reconheceria como “estres­se” na acepção popular do termo. Nesta acepção popular, há neces­sidade de um componente reati­vo psicológico-social (“fiquei es­tressado com meu patrão”, “estou estressado com minha situação financeira”), algo que não está ne­cessariamente presente na acep­ção médica do termo (aqui fala­-se em “estresse cirúrgico”, “teste de estresse ergométrico”, “estresse farmacológico sob dobutamina”, “reação aguda de estresse endo­crinológico”, “estresse anestésico”, “estresse por trauma físico”, “rea­ção de estresse da queimadura”, etc). São várias situações biológicas que desencadeiam uma cascata de eventos biológicos de muita com­plexidade, por exemplo, aumen­do de neuropeptídeos, elevação do cortisol plasmático, secreção au­mentada do ACTH hipofisário, au­mento dos glicocorticóides e mine­ralocorticoides adrenais, elevação das catecolaminas norepinefrina e adrenalina, reações simpatico­miméticas e anticolinérgicas, etc.

DM – Mas estas reações biológicas complexas que o senhor descreveu acima também não podem estar presentes no que o leigo entende por “estresse psicológico-social”?

Marcelo Caixeta — Sim, e é por isso que às vezes gera-se confusão e interpenetração, mistura, daqui­lo que o leigo entende por estresse e o que a Medicina qualifica como estresse. Por exemplo, se o seu che­fe briga com você, xinga você, seu organismo pode gerar reações de “luta ou fuga”, sendo que, na reação de luta, raiva, muitas sequências biológicas são exatamente aque­las descritas acima.

DM – Estas “reações de estresse psicológico-social” estão aumentando na sociedade contemporânea?

Marcelo Caixeta — Exa­to. Nosso equipamento biológico tem mudado muito pouco no de­correr destes últimos 100.000 anos, mas as estruturas psicológico-so­ciais mudam praticamente a cada década. Isso gera um descompas­so enorme entre nosso equipamen­to biológico e nosso equipamento psicológico-social. Se nós pegar­mos, por exemplo, uma socieda­de caçadora-coletora de uns 5 mil anos atrás, e a compararmos com a sociedade atual, há várias dife­renças enormes. Os homens, por exemplo, sexo masculino, convi­viam muito menos uns com os ou­tros (pouca densidade demográ­fica, trabalhos silvícolas, longos períodos de isolamento para ca­çar ou coletar, etc) do que os ho­mens da idade moderna, que são “forçados ao convívio”, às boas ma­neiras, à contemporização de con­flitos, à anulação de ódios e im­pulsividades, etc (“engolir sapos”) . Já as mulheres, que sempre tive­ram um padrão de convivência psicológica-social maior do que o dos homens (maior convívio com as crianças, com as outras mu­lheres, mais restritas à tribo ou à caverna, etc), não eram tão acos­tumadas aos mecanismos de in­tensa pressão, competição, pres­sa, resolutividade, eficiência, etc, à que estão submetidas nos dias hoje. O equipamento biológico de ambos os sexos, homens e mulhe­res, portanto, é, hoje, submetido à grande “estresse”, tudo isso devido à nossa nova organização psico­lógico-social-laboral da socieda­de moderna. Por exemplo, os ho­mens daquela época não eram “enquadrados na caixinha” de ter de levantar-se todos os dias à mesma hora, irem para o mes­mo trabalho, desempenharem a mesma rotina, isso dias a fio, me­ses e anos a fio. A própria conti­nuidade, uniformidade, mesmi­ce, tédio, subserviência constante (“sempre obedecer”), “competiti­vidade controlada” (você tem de “ser agressivo na competição”, mas não pode “agredir” de fato seu ri­val), tudo isso vai contra o equi­pamento biológico que a natu­reza levou milênios para erigir.

DM – Quais são as consequências disso tudo para o nosso “equipamento biológico”, como o senhor falou?

Marcelo Caixeta — As conse­quênciaspodemmanifestar-setanto no plano corporal (doenças psicos­somáticas) quanto no plano cere­bral (doenças psiquiátricas). Por exemplo, secreção aumentada da peptina, da secreção hidroclori­dropéptica, podemle­sar a mucosa do estômago, ge­rando gastrites erosivas ou úlceras estomacais\duodenais. O aumen­to nos glicocorticóides/mineralo­corticóides podem engengrar uma disfunção no sistema renina-an­giotensina, precipitando situações de hipertensão arterial sistêmica, arritmias cardíacas. Modificações hipotálamo-hipofisárias podem produzir graves mudanças endo­crino-imunológicas, desencadean­do endocrinopatias, por exemplo, hipotiroidismos, falência gonádi­ca precoce, ou autoimunes, lúpus, alopécia, psoríase, Crohn, etc. A si­tuação de estresse continuado, no plano cerebral, pode gerar mudan­ças catecolaminérgicas, indolami­nérgicas, adrenérgicas, neuropep­tídeas, e isto redunda em estados severos de ansiedade, hiperexcita­ção, insônia, preocupação excessi­va (obsessões), reações de pânico, problemas do sono (por exemplo, parassonias, pesadelos estressan­tes, reações a fatos traumáticos vi­venciados).

DM – Esse “estresse excessivo” acaba, então, gerando problemas psiquiátricos graves, não é?

Marcelo Caixeta — A resposta a esta questão tem de ser muito bem nuançada, pois o mal-entendido nesta área é enorme, inclusive com repercussões judiciais (houve um aumento de mais de 500% nos úl­timos 10 anos de alegações traba­lhistas por “doenças ocupacionais por estresse, assédio moral, culpa das empresas por permitirem situa­ções insalubres do ponto de vista psiquiátrico”). Nas doenças do es­tresse, a psiquiatria faz uma dife­rença muito clara entre : 1º) aquele indivíduo que já tem seu equipa­mento biológico patologicamente predisposto para reações exagera­das de estresse (aproximadamente 95% da clientela que procura o psi­quiatra por problemas de “estres­se”) e 2º) aquele indivíduo que, realmente, passou por uma situaçãograndementees­tressante (acidente onde morreu gente, mu­tilou-se a outrem ou a si mesmo, sequestros, in­cêndios, mor­tes co­letivas, agressões graves e con­tinuadas, se­verashumilha­çõesesituações graves de im­potência, ca­tástrofes com sentimen­to de vulne­rabilidade e impotên­ciaparaaju­darquempe­dia por socorro, etc), situações to­das de tão grande magnitudeaponto de acometer um equipamen­to biológico normalmen­te constituído. Esta situação de número “2” é a minoria entre os que procuram tratamento médico-psiquiátrico por pro­blemas de estresse. A maioria so­freu situações estressoras leves, ge­ralmente sem “culpa” ostensiva do empregadoroudeoutrem, mas, que, diante de um equipamento bioló­gico já patológico, enveredaram por doenças psiquiátricas severas.

DM – Então, segundo o senhor há um grande descompasso entre o que a Justiça entende como “estresse” e o que a Medicina\ Psiquiatria entende como tal...?

Marcelo Caixeta — Sim, ao meu ver há uma gran­de inversão e incompreensão jurídico-traba­lhista neste terreno : 100% des­tes trabalhadores que entram na justiça alegando estes pro­blemas psiquiátricos se dizem vítimas dos empregadores, que os teriam submetido a situações de enorme estresse, justificando o aparecimento da doença. Mas não é isto que vemos na prática psiquiátrica, onde, como já rela­tei acima, apenas uma percen­tagem pequena destas doenças graves é devida a reais condi­ções insalubres laborais.

DM – Mudando um pouco de assunto, o que o senhor teria a dizer, enquanto médico psiquiatra, sobre a diferença que nós, leigos, fazemos, entre a “estafa” e o “estresse”? Hoje em dia é também muito comum as pessoas dizerem que “estão estafadas” com suas situações laborais ou sociais-familiares-existenciais. Há certo “exagero” nisso? Há pessoas que podem simplesmente estar se escondendo, com suas eventuais “preguiças”, por trás desses nomes pomposos?

Marcelo Caixeta — Sob o nome “estafa” o leigo pode estar nomean­do várias situações que o médico, o psiquiatra, especificaria melhor sob várias rúbricas diferentes. Por exemplo, com “estafa”, o leigo pode estar falando de uma situação de­pressiva propriamente dita. Para o leigo, o “estresse” está mais rela­cionado ao que, em medicina psi­quiátrica, nós chamaríamos mais simplesmente de “ansiedade”, e sob o nome “estafa”, poderíamos estar a nos referir, em psiquiatria, à uma pura “depressão”. Estas situações, muitas vezes, se recobrem ou se in­terrelacionam, por exemplo, é bem comum na prática clínica-psiquiá­trica de vermos um paciente “estres­sado” (ansioso) caminhar passo a passo em direção à uma “estafa” (depressão). O estresse (ansiedade) pode, por, esgotamento biológico, engendrar a “estafa”, a depressão.

DM – E quais outras situações onde a “estafa” poderia estar presente?

Marcelo Caixeta — Muitas vezes o leigo se refere à “estafa” para descrever uma situação de cansaço laboral puro e simples. É evidente que uma pessoa que trabalhe muito, em situações psi­quiatricamente insalubres, em si­tuações estressantes (por exemplo, trabalhos de jornalista, motoris­ta de coletivo, telemarketing, pro­fessor, médico\enfermeiro em uni­dades de emergência, etc) venha a desenvolver situações de “can­saço”, “burn-out”. É uma situação opressiva que, ao mesmo tempo, exige um alto performance, alta contenção de emoções e reações, alta capacidade cognitiva para a resolução de conflitos. É um pouco diferente daquela reação à uma catástrofe, essa sim pode gerar o que chamamos de “reação de estresse pós-traumático”. Já nas situações “estafantes”, o que está em jogo não é propriamente um “grande estresse pontual”, mas sim situações continuadas onde a energia mental gasta na reso­lução de conflitos e problemas é muito grande, gerando a depres­são (estafa) por “esgotamento”.

DM–Então, do ponto de visa médico-biológico, além de psiquiátrico, há diferenças entre o “estresse e a estafa”?

Marcelo Caixeta — Sim, hácom­plexas diferenças tanto no plano so­mático-sistêmico quanto da neuro­bioquímica cerebral. Não dá para descer a detalhes técnicos muito profundos, que seriam inúteis ou muito pedantes, mas, muito sim­plificadamente poderíamos apon­tar alguns. Por exemplo, no estres­se, como já dissemos acima, pode haver um aumento catecolaminér­gico epinefrínico-noradrenérgico na fenda sináptica e já na estafa o que há é uma diminuição des­tas substâncias neurotransmisso­ras. O mesmo acontece com várias outras substâncias neuroquímicas cerebrais, por exemplo, endorfinas, substância P, alterações dos recep­tores sigma, dopaminérgicos, etc. Há pacientes que, antes de “entrar em estafa” podem ter passado por um período de “estresse”; no entan­to, já há muitos outros que entram na “estafa” sem terem passado por estresse, e há ainda outros que, do estresse, não vão diretamente para a estafa; podem por exemplo entrar em outra via psiquiátrica patoló­gica tal como a psicose ou deter­minados transtornos obsessivos, síndromes psicossomáticas, trans­tornos parassônicos ou dissônicos (sono), dismnésicos (memória).

DM–Mulheres e homens podem estar sujeitos diferentemente à cada uma dessas condições?

Marcelo Caixeta — Sim, geral­mente há uma representação pa­tológica diferencial entre os sexos. É comum, p.ex., mulheres reações de “estafa por esgotamento” depois de exigências laborais continua­das. As mulheres, no trabalho, por serem funcionárias mais discipli­nadas, esforçadas, obedientes, ro­tineiras, confiáveis, plácidas, ten­dem a virar “burro-de-carga” dos chefes mais competitivos e agressi­vos (geralmente um homem). Elas se sentem bem por serem valoriza­das, por estarem “subindo rápido nas carreiras”, “virando chefes ou supervisoras-gerentes”, ganhan­do mais, recebendo mais louros... No entanto, isso pode vir a confi­gurar-se numa “armadilha esta­fante” com o tempo. O surgimento da “depressão estafante” é maior nesta população. Já os homens, por estarem submetidos a traba­lhos mais “duros”, que envolvem mais riscos, mais agressividades, mais embates pesados (físicos ou emocionais), mais catástrofes ou sinistros físicos e naturais, estão sujeitos em maior quantidade aos transtornos mentais conse­quentes aos verdadeiros estres­sores de grande magnitude.

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