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COTIDIANO

O dia em que soldados goianos foram lutar na África

O que soldados goianos, que servem naquele enorme quartel do Exército que tem ali no Jardim Guanabara, fo­ram fazer na Costa do Marfim? O país estava em plena guerra civil. E uma tropa de goianos, em sua maio­ria, foram para lá. Ficaram no país vários meses. Não chegaram a travar combates, mas estiveram o tempo todo com o dedo no gatilho, pronto para qualquer emergência.

Parece fantástico. Mas, aconte­ceu. Muito discretamente, é ver­dade. A imprensa brasileira nunca tocou no assunto. Certamente por­que o desconhece. Ainda hoje os militares brasileiros falam da mis­são com alguma reserva. E não po­deria ser de outro modo. Os mili­tares brasileiros entraram lá sem pedir licença, embora seu objetivo não fosse fazer guerra. Pelo contrá­rio, o Exército Brasileiro para lá foi mandado, pelo governo do Brasil, com a missão de salvar vidas. De resgatar brasileiros que estavam no fogo cruzado dos partidos belige­rantes e não tinham como sair de lá.

Quem conta este episódio iné­dito das forças armadas brasilei­ras, denominado “Operação Tigre”, é um ex-oficial que participou da missão. Vitor Hugo Figueredo, ma­jor reformado do Exército, hoje ad­vogado, servidor público federal da Câmara dos Deputados e candi­dato a deputado federal pelo PSL.

COSTA DO MARFIM

Antes de entrar na história, para saber o que levou os soldados goianos a se meter na guerra civil da Costa do Marfim, é bom saber um pouco sobre aquele país. Costa do Marfim é um país africano que foi colônia da França. O idioma é o francês, naturalmente, além das lín­guas das tribos nativas. Côte d´Ivoi­re, é como o país é chamado.

Costa do Marfim é escassamen­te industrializado, tem pecuária de subsistência, sendo porém o maior produtor de cacau do mundo.

Em 1919, a parte norte da colônia se tornou independente. Abidjan, a maior cidade, permaneceu sob ju­risdição francesa durante a Segun­da Guerra Mundial, embora a Fran­ça estivesse ocupada pelos alemães. Em 1944, foi criado o Sindicato Agrí­cola Africano, que deu origem ao Partido Democrático da Costa do Marfim. Entre 1950 e 1954, foi cons­truído seu porto. Em 1958, foi pro­clamada a República da Costa do Marfim, como estado autônomo dentro da Communauté française (Comunidade Francesa) e, em 1960, alcançou-se a independência plena.

Foi eleito presidente Félix Hou­phouët-Boigny, líder do Partido De­mocrata da Costa do Marfim, que até 1990, foi a única agremiação política legal no país. Com um ali­nhamento político pró-ocidental, a Costa do Marfim esteve em foco na década de 1970, ao tentar intervir pela via das negociações na desati­vação do apartheid na África do Sul.

As eleições de 1990, a primei­ra em que houve uma disputa real pelo poder, foram travadas por to­dos os partidos políticos já legali­zados, tendo o presidente Hou­phouët-Boigny sido reeleito para um sétimo mandato. Também em 1990 o Papa João Paulo II visitou a Costa do Marfim, onde consagrou, em Iamussucro, uma suntuosa ba­sílica, oficialmente construída às expensas do presidente. Houphou­ët-Boigny, apesar de numerosas tentativas de golpes de estado e da instabilidade social provocada por crises econômicas, manteve-se no poder desde a independência até dezembro de 1993, quando faleceu.

O antigo presidente da Assem­bleia Nacional (Parlamento), Hen­ri Konan Bédié, assumiu a presi­dência da República em 1993, sendo confirmado no cargo em 1995. No dia 24 de dezembro de 1999, um golpe de Estado, coman­dado pelo general Robert Guéï, destituiu o presidente Konan Be­dié, que se refugiou na Embaixada da França e depois no Togo. O ge­neral Guéï convocou todos os par­tidos políticos para formarem um governo de transição e prometeu que o retorno à democracia seria rápido. Esse foi o primeiro golpe de estado no país desde a sua in­dependência em 1960.

Em 2000, Laurent Gbagbo, lí­der histórico da oposição, foi elei­to presidente da República, der­rotando Robert Gueï, tendo este último sido assassinado duran­te um levantamento encabeçado pelo Movimento Patriótico da Cos­ta do Marfim em 2002. O escrutí­nio, entretanto, reavivou as tensões étnicas e religiosas no país.

Eclodiu a Guerra civil da Costa do Marfim em 2002, conflito quer durou até 2007, tendo focos rebel­des assumido o controle do Norte e do Oeste do país. 10.000 boinas azuis da ONUCM (Forças de Paz da ONU na Costa do Marfim), dentre os quais 4600 soldados franceses da Licorne (operação militar fran­cesa para a Costa do Marfim), fo­ram posicionadas entre os belige­rantes. Um acordo de paz diminuiu o poder de Laurent Gbagbo, mas a situação política permaneceu ins­tável. Em 2003, após o cessar-fo­go, estabeleceu-se um governo de união nacional, mas continuaram os confrontos políticos e militares. Em 2005, o mandato do presiden­te Gbagbo é prorrogado pelo má­ximo de um ano (um governo de transição é encarregado de orga­nizar eleições). Mas a situação po­lítica e militar permanece caótica. Gbagbo, entretanto, manteve-se no poder por mais alguns anos devi­do a atrasos na convocação do plei­to. A guerra civil, dividiu o país en­tre o sul, leal ao governo, e o norte, controlado pelas Forças Novas de Guillaume Soro.

ENVOLVIMENTO

Aqui começa a história do en­volvimento dos goianos na his­tória. Vitor Hugo, então tenente, acaba de voltar de outras mis­sões pelo exterior, missões pa­cíficas, quando recebeu ordens para voar para a África.

“Seis meses longe de casa, divi­didos em períodos de quatro a cin­co semanas ao longo de 2004, não me impediram de ser escolhido naque­le dia. Novembro, imaginava que entraria de fé­rias naquele sábado até descobrir, através das palavras de meu Co­mandante, que ficaria um mês e meio a mais na Costa do Marfim”, ele conta.

Vitor Hugo então integrava o 3º Destacamento Operacional de For­ças Especiais (3º DOFEsp) do 1º Ba­talhão de Forças Especiais, estrate­gicamente localizado em Goiânia, desde fins de 2003. O 3º DOFEsp, voltado para as ações contrater­roristas, foi a base para a monta­gem do destacamento que cruzaria o Atlântico horas depois da notí­cia por ele recebida para ficar não mês e meio, como havia sido in­formado, mas sete meses em solo marfinense, seis dos quais sem ter a mínima noção de quando ou se retornaria.

A missão: “salvaguardar in­teresses brasileiros no exterior” que, traduzido em miúdos, nes­se caso, seria evacuar os brasilei­ros da zona de conflito em que o país havia se transformado há al­guns dias e proteger nossa embai­xada e seu representante maior, o embaixador do Brasil em Abidjan.

“Poucos goianos sabem, mas partiu daqui, de Goiânia, o C-130 Hércules, da Força Aérea Brasileira, que nos conduziu para essa missão. O contexto vivido incluía mortes e estupros de estrangeiros, embaixa­das estrangeiras sendo fechadas, distúrbios civis generalizados, des­truição de prédios e lojas perten­centes a pessoas oriundas de outros países, desabastecimento, enfim, toda uma gama de problemas que enfrentaríamos horas depois de re­ceber a missão”, lembra Vitor Hugo.

A Costa do Marfim ficara inde­pendente da França, mas não ha­via conseguido romper definitiva­mente os laços com a ex-metrópole. Uma guerra fratricida havia sido de­flagrada anos antes desde que um presidente incauto criara um con­ceito de nacionalidade, de “marfi­nidade”, extremamente exclusivo, o que dividiu sul e norte; nacionais e estrangeiros; cristãos e muçul­manos; governistas e opositores, “numa manobra semelhante à que os esquerdistas, hoje, tentam fazer com nosso País”, comenta o militar. “Algo extremamente perigoso e ex­plosivo, como pude testemunhar ao vivo e a cores”, complementa.

Naqueles primeiros dias de no­vembro de 2004, uma missão área malsucedida marfinense bombar­deara base francesa no limite entre o norte guerrilheiro muçulmano e o sul governista cristão. O alvo era a guerrilha, mas a França, aliada do governo, foi atacada por engano e revidou, imediatamente, destruin­do, em solo, toda a força aérea da Costa do Marfim, quatro caças de origem russa. “Foi o estopim para que os cidadãos marfinenses da capital irrompessem ataques in­discriminados a quaisquer pes­soas que tivessem tonalidade de pele e sotaque que indicassem se­rem estrangeiros, a incluir os bra­sileiros”, relata Vitor Hugo.

EMBAIXADOR DO BRASIL

O embaixador do Brasil, asses­sorado por um oficial do Exército Brasileiro servindo na missão da Organização das Nações Unidas (ONU) naquele País, solicitou ao presidente da República, Luiz Iná­cio Lula da Silva, o envio de tropas das Forças Especiais.

“Em pouco mais de 24 horas do meu acionamento, lá estava eu cru­zando o Atlântico num C-130 Hér­cules, ladeado por outros Coman­dos e membros de Forças Especiais, realizando o planejamento duran­te o voo”, conta o major reformado.

Prossegue a narrativa: “Minutos antes do pouso na Costa do Marfim, ainda não tínhamos a confirmação do real estado de segurança da pista e também da condição dos brasilei­ros que deveríamos salvar. Ao baixar a rampa do Hércules, descobrimos que os brasileiros estavam reuni­dos na pista do aeroporto. Após re­tirarmos toneladas de material e de munição que utilizaríamos duran­te a missão, embarcamos nossos compatriotas com destino ao Brasil”.

Vitor se recorda de que foi um momento de grande tensão e de muita emoção. “Muitos cumpri­mentos e agradecimentos da par­te dos evacuados, até perceberem que nós ficaríamos. Então, come­çaram súplicas para que retornás­semos também, porque, segundo afirmavam, o país estava sem con­trole e não havia segurança para que permanecêssemos lá”.

Ocorreu, porém, que o embaixador brasilei­ro, ao contrário de mui­tos outros de origem es­trangeira, quis manter nossa representação diplo­mática aberta, inclusive para apoiar os demais brasileiros que, por quaisquer circunstân­cias, não se encontravam ali naquele momento para a evacuação.

O Hércules deco­lou em direção ao Brasil. “Nós permanecemos por sete meses em missão. Es­truturamos a segurança da em­baixada e uma rede de apoio capaz de garantir, caso necessário, a eva­são dos brasileiros que quisessem voltar, caso a situação do país pio­rasse”, conta o militar.

Somente seis meses depois os militares brasileiros receberam a notícia de que voltariam para casa, Vitor Hugo relata que um dos coor­denadores da estadia dos brasileiros na África, mais ou menos aos dois meses de missão, disseram: “não perguntem mais quando retornarão para o Brasil; vocês podem ficar seis meses, um ano ou até mais; quando possível, faremos o revezamento”.

“Foi uma excelente missão, po­rém”, recorda Vitor Hugo. “Chega­mos a Costa do Marfim em mea­dos de novembro. Fui promovido a capitão em dezembro e retornamos para o Brasil em fins de maio do ano seguinte, sendo rendidos por outro destacamento que assumiu a tare­fa do ponto em que a deixamos. Eu não sabia quando seria nossa parti­da para o Brasil. Contudo, três anos depois de deixar Abidjan, para lá re­tornaria em 2008, para ficar um ano, não mais numa missão das Forças Especiais, mas como observador militar da ONU. Entretanto, essa é outra história”, esclarece.

“Nem toda a trajetória de nossas Forças Especiais está escrita. Deve­ria. Os goianos se orgulhariam mais de ter, no seio de sua comunidade, a tropa de elite do Exército Brasilei­ro, cerne de suas Operações Espe­ciais, os Combatentes Comandos e os Operadores de Forças Especiais, muitos dos quais, hoje, são nasci­dos em Goiás ou aqui radicados. O tempo se encarregará de os revelar. Tenho certeza. Comandos! Força! Brasil!”, exulta o militar.

COMANDO DE OPERAÇÕES ESPECIAIS

O Comando de Operações Es­peciais (COPEsp) é uma das Gran­des Unidades Operacionais do Exército Brasileiro, localizada em Goiânia. É subordinada ao Co­mando Militar do Planalto e vin­culada, para fins de planejamento, preparo e emprego, ao Comando de Operações Terrestres (Coter), situado em Brasília. Integra a For­ça de Ação Rápida Estratégica do Exército, o que a torna apta a par­ticipar de operações em todos os comandos militares de área.

É uma unidade de formação de “comandos”, um tipo de comba­tente preparado para missões de alto risco pessoal, que exige um nível altíssimo de adestramento. Um “comando” tem que saber li­dar com explosivos, saltar de para­quedas, mergulhar, entrar em luta corporal com o inimigo, infiltrar­-se atrás das linhas inimigas... En­fim, é a turma da pesada.

Os Destacamentos da Brigada de Operações Especiais possuem a capacidade de infiltrar-se no am­biente operacional por terra, mar ou ar, utilizando-se de meios con­vencionais ou não, como viaturas especiais, embarcações e salto de paraquedas. As unidades de ope­rações especiais que integram o Comando são o 1º Batalhão de Forças Especiais, o 1º Batalhão de Ações de Comandos e a 3ª Com­panhia de Forças Especiais, que é voltada exclusivamente para o emprego na área do Comando Mi­litar da Amazônia. Possui ainda o Centro de Instrução de Operações Especiais, onde são formados os seus recursos humanos e também outras unidades de apoio logísti­co e administrativo, além de uma unidade de emprego singular no Brasil, o 1º Batalhão de Operações de Apoio à Informação.

ORIGEM

Vitor Hugo Figueredo nasceu em Salvador, Bahia, filho de um oficial de Marinha. Graduado pela Amam, foi destacado para servir em “forças especiais” quando a Bri­gada, que tinha sede no Rio de Ja­neiro, foi transferida para Goiânia, absorvendo o antigo 42° Bin, anti­go 10° BC. Aqui Vitor Hugo se ca­sou e constituiu família. Depois de graduar-se em Direito pela UFG, prestou concurso para a Câmara dos Deputados, onde é assessor de segurança nacional. Filado ao PSL, é candidato a deputado Federal.

O contexto vivido incluía mortes e estupros de estrangeiros, embaixadas estrangeiras sendo fechadas, distúrbios civis generalizados, destruição de prédios e lojas pertencentes a pessoas oriundas de outros países, desabastecimento, enfim, toda uma gama de problemas que enfrentaríamos horas depois de receber a missão” Vitor Hugo, militar reformado.

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