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A subversão da literatura

Um livro de poesia na gaveta não adianta nada: o lugar dela é na calçada, assim como o do quadro é na exposição e da música é tocando no rádio. Se os versos eternizados pelo cantor capixaba Sergio Sampaio na música “Cada Lugar na Sua Coisa” na década de 1970 falavam sobre a importância de despir o terno e a gravata da arte, são neles que se encontram paralelos para o esforço de 35 autoras e autores goianos de verem-se publicados no terceiro volume da Coleção e/ou, nas antologias de poesia e prosa.

Os selecionados foram escolhidos a partir de edital, juntamente com a editora Nega Lilu, e buscam apoio por meio de financiamento coletivo para viabilizar, até 4 de novembro, a publicação da obra de maneira independente, sem amarras estéticas ou picuinhas editoriais. As doações variam de R$ 35 a R$ 150, com recompensa. Para contribuir, basta acessar o site www.catarse.me/colecao_eou3 .

Criado em 2016, o projeto já publicou quase 80 novas escritoras e novos escritores. “Consideramos este trabalho a ‘menina dos olhos’ da editora, por ser uma ação de qualificação da escrita poética e literária em Goiás”, afirma a editora, escritora e jornalista Larissa Mundim. Até o momento, a campanha – que tem duração de dois meses – possui a meta de arrecadar R$ 29 mil, mas, caso ela não seja alcançada, o recurso vai ser devolvido aos apoiadores pela própria Catarse.

Na terceira semana de mobilização, 30% do recurso necessário para a editoração e impressão de 1,6 mil cópias havia sido captado. ““Nesta fase da campanha, será fundamental o apoio de pessoas jurídicas, empresas interessadas em fortalecer a literatura, a poesia, a cultura goiana”, diz Mundim. O valor mínimo para colaborar é R$ 25. No entanto, quantias maiores também podem ser feitas, o que determina a recompensa, desde agradecimentos públicos até obras do catálogo da Nega Lilu.

A representatividade será o mote do terceiro volume da “Coleção e/ou”: 23 mulheres, 11 homens e uma pessoa não-binária. Segundo edital de seleção, autores e autoras dos poemas, contos e crônicas veiculadas na obra nasceram ou moram em Goiás, seja na capital ou interior. As antologias, inclusive, terão a contribuição de 10 convidados e convidadas. É, de fato, uma chance de mudar a relação de quem escreve com a escrita, ao iniciar uma conversa com o público leitor que não seria possível sem o livro.

“Fui publicada na edição 2, e serei agora na 3. Tive acesso à divulgação por mídias virtuais e fui selecionada. Isso foi fundamental para eu passar a ter contato com as pessoas que produzem literatura a nível municipal e, depois, poder publicar meu primeiro livro de poesia”, relata a poeta Beta M.X. Reis, que é autora de “Dezessete”, título publicado pela Nega Lilu. “Ter sido selecionada significou para mim que alguém reconheceu algo de interessante no que eu fazia”, completa a escritora.

A iniciativa, sem dúvidas, oxigena a cena literária local ao proporcionar uma troca de experiências entre quem púbica e quem edita essas obras, revelando nomes que – não fosse o edital – talvez nem tivessem chance de ver um trabalho da envergadura de um livro circulando entre os leitores. Na Coleção e/ou, por exemplo, centenas de escritoras – pela primeira vez – verão o que escrevem lido por alguém que não seja amigos ou familiares, e esse processo é imprescindível para a democratização da literatura.

TRANSGRESSORA POR NATUREZA

Para o poeta Rico Lopes, autor de “Rifle”, a poesia é subversiva por natureza. “Ela já saiu as prateleiras empoeiradas das bibliotecas e tem caminhado a passos largos com os saraus e slams a despeito do preciosismo de alguns. Penso que é assim, como uma poesia destemida que ela funciona como frente de resistência e ampliação das representatividades”, analisa Rico, fã de Lawrence Ferlinghetti e Allen Ginsberg.

Rico chegou ao coletivo e/ou durante o primeiro edital, em 2016. Na época, diz, escrevia contos: dois deles foram selecionados e publicados. Desde então, o escritor estabeleceu um diálogo com o coletivo e as ações propostas nele foram fundamentais na aprimoração de sua escrita. “Gosto sempre de ressaltar que o envolvimento com o coletivo foi um dos meus principais eixos formadores como escritores”, destaca.

Em Goiânia, existem iniciativas locais que ajudam a difundir a literatura produzida por jovens autoras e autores, como o coletivo Goiânia Clandestina, que publicou títulos como “Sentimentos Carimbados”, da poeta e professora da Faculdade de Letras da UFG, Tarsilla Couto de Brito, e é responsável pela Revista Clandestina. Além do grupo capitaneado pelo poeta Mazinho Souza, a Revista Tem Base?! faz esse trabalho curatorial para ampliar as vozes e os discursos. Ou seja, há uma efervescência em voga.

“Em grande medida se deve a iniciativas promovidas pela Nega Lilu Editora (por ex: Feira e-cêntrica). Da coleção e/ou surgem novas autorias, que lançam livros, se engajam em outras atividades, e vão fazendo o movimento girar”, lembra Beta. “Poesia e arte não são luxos, são necessidades vitais. Precisamos de muitas coisas para ter um país melhor, mas dentre esses aspectos, podemos certamente incluir ler e fazer poesia, pois é do impulso criativo que podemos sair das amarras que nos constrangem.”

A poeta, atriz, performer e roteirista Mel Gonçalves vai pelo mesmo caminho: “a poesia é uma linguagem pra atravessar barreiras, pois gera identificação e reconhecimento.” Autora negra e obesa, Mel expressa sua esforça, poder e subjetividade que inspira outras mulheres a canalizarem suas emoções pela escrita. “Além de ser um incentivo ao estudo, pois poesia é 10% inspiração e 90 trabalho. Se estudamos mais ficamos mais perto de lugares onde não nos deixam ir. A poesia abre portas para outros mundos”, complementa.

Quem pode escrever? Todo mundo. Quem pode criar? Todo mundo. E não apenas a velha e caduca ideia de esses ofícios serem destinados a uma parcela de bem-nascidos, dentre dos padrões heteronormativos, de cor, localização geográfica. “A representatividade, assim, tem efeitos positivos que vão para muito além do imaginado, já que abre mais espaços de possibilidades”, atesta Beta Reis.

Gustave Flaubert, romancista francês do século 19, dizia que Madame Bovary era ele próprio. Ou seja, a poesia, a ficção como um todo, sempre traz consigo marcas de quem escreve. E essa é justamente sua beleza

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