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COTIDIANO

Vamos celebrar a estupidez humana

Será que ele é mesmo uma mera cópia de Ian Curtis e The Smiths?

Se é ou não, isso pouco importa: quando morreu à 1h15 do dia 11 de outubro de 1996, em decorrência de complicações provocadas pelo vírus HIV, no seu apartamento na rua Nascimento da Silva, em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, Renato Russo deixou uma obra eclética, com versos inconformados, de amor, de dores, de sarcasmo… Tinha apenas 36 anos. Não tinha mais todo o tempo do mundo. Tempo perdido.

Eu estava de pé, no meio da muvuca, cigarro entre os dedos, esperando começar o show da Legião Urbana no João Rock, em 2019. A plateia gritou quando o guitarrista Dado Villa-Lobos mandou o primeiro acorde de “Daniel na Cova dos Leões”, música que faz parte do disco “Dois”, lançado em 1986. Então, de uma hora para outra, fui arrebatado pela força do som da Legião. Foi comparável a estar numa roda gigante girando contra o céu. Entendi ali diferença entre a música certa e a música errada.

A música certa é como o momento que antecede a leve explosão do gozo: é uma música arrepiante, para ser ouvida numa tarde chuvosa de terça ou quarta-feira, com um conhaque ao lado, pensamentos difusos sobre essa loucura chamada vida. É uma música tão potente que nos fornece o combustível necessário para seguir em frente.

Renato Russo, assim como fez para aquele jovem jornalista cultural que todos os dias antes de dormir lembrava e esquecia como havia sido o dia, criou a trilha sonora para uma geração empolgada pela abertura política após 21 anos de ditadura militar. Além de falar diretamente com os jovens, Renato conversou ainda com os pais deles, esses sim sufocados pela mordaça imposta pelo regime de exceção. Um verso, um riff, um groove, por mais simples que seja, se constitui a trilha musical obrigatória da História.

Rolling Stones não me deixam mentir, idem Beatles. Ou The Doors. Ou The Who. Ou Led Zeppelin. Ou The Clash. Ou Joy Divison. Ou.. É o som, a revolta do rock, como a música a ser escuta para ilustrar sonoramente os desdobramentos sócio-políticos.

Nascido no Rio de Janeiro em 27 de março de 1960, ao ir morar em Brasília aos 13 anos, Renato estava – meio sem saber, ou sabendo, já que ele ‘planejara’ no ano 2000 o abandono da música para se dedicar ao cinema e, 20 anos depois, viveria de literatura – dando os primeiros passos em direção ao rock ´n´ roll. Anos depois, tocou pela primeira vez com a banda punk Aborto Elétrico. Em 1985, com a Legião, lançou o primeiro LP da carreira, um disco que tem os hits “Será”, “Ainda é Cedo” e “Geração Coca-Cola”. Sucessos que compõem livros didáticos e não saiu da boca do povo.

Na sequência, discos que – de alguma forma – aparecem como os principais da Legião: “Dois” (1986), “Que País É Esse” (1987), “As Quatro Estações” (1989) e “V” (1991). É uma discografia que, apesar dos arranjos pouco trabalhados, até simplistas, marcaram a memória musical brasileira. Até hoje, é possível encontrar os jovens que escutavam “Que Pais É Esse?” durante a hiperinflação do governo Sarney e agora acreditam que esses versos podem ser representativos para, por exemplo, pedir intervenção militar. Confuso? Sim. Esquisito? Demais. Só que Renato, para nossa sorte, foi bem o oposto.

Letrado no inglês, sua paixão pelo rock floresceu assim que ganhou o disco intitulado “The Beatles”, também conhecido como “Álbum Branco”. E foi ouvindo faixas como “Helter Skelter”, White My Guitar Gentley Weeps” e “Blackbird” que a música começou a chamar atenção do garoto. Anos depois, diz o jornalista Arthur Dapieve na biografia “Renato Russo – O Trovador Solitário”, a banda inglesa também fora responsável por outra descoberta na vida de Renato: a sexualidade. O primeiro homem pelo qual se apaixonou foi Paul McCartney quando o baixista dá as caras em “Help”, filme que Richard Lester dirigira em 1965. Anos depois, já em Brasília, estudante de Jornalismo, chegou a apresentar um programa sobre o quarteto numa rádio FM.

Após os Beatles, Renato descobriu Elvis Presley e Bob Dylan. Eram seus refúgios. Amigos imaginários. Antes do punk, gênero definitivo para ele, passou pela fase do rock progressivo, ao mesmo tempo em que devorava autores como Allen Ginsberg e Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Nietzsche.

Descobertas musicais
Renato, junto com seu parceiro de geração Cazuza, está para a geração oitentista assim como Caetano Veloso e Gilberto Gil à turma da Tropicália. Ele deu tom, a letra, o ritmo: “viver é foda/ morrer é difícil/ vamos fazer um filme?”, canta em “Vamos Fazer um Filme”, canção do disco “O Descobrimento do Brasil” (1993). E a crítica aos poderosos de “Perfeição”? “Vamos celebrar a estupidez humana/ a estupidez de todas as nações/ o meu país e sua corja de assassinos/ covardes, estupradores e ladrões”.

Seus versos, por essas e por outras, demonstravam uma riqueza lírica, com forte carga poética aliada à coloquialidade, mas sem soar pedante ou de difícil compreensão: foi com esses ingredientes que Renato conseguiu se comunicar com os filhos da burguesia, da geração Coca-Cola, da qual ele falava na música de mesmo nome lançada no primeiro disco da Legião Urbana. E certamente, por conta dessa linguagem sem firulas, é que suas músicas sobrevivem ao tempo e se tornaram um retrato de uma época, de uma geração, de um Brasil que insiste em não seguir a lógica cíclica da História.

Por isso, é comum nos pegarmos num diálogo dentro de nossas cabeças sobre ‘o que Renato diria disso hoje?’ E nem é tão difícil assim, basta colocar a música certa, no momento certo e lá estará o líder de umas bandas mais populares do rock brasileiro com uma mensagem, no mínimo, importante de ser assimilada e debatida.

Quando eu estava espremido na multidão assistindo a Legião Urbana, com Marcelo Bonfá, Dado Villa-Lobos e André Frateschi no João Rock em 2019, foi como se pulasse da solidão do quarto escuro adolescente para um mundo em que as coisas não precisavam serem chatas. E nem eu o ‘esquisitão’ que gosta de rock e questionar o dogma das pessoas. Sim, hoje – é verdade – a Legião não faz mais parte do meu repertório musical como nessa época. Mas, cara, a banda forma e molda gostos, preferências, estéticas e estilos. No final das contas, é o que vale a pena.

Para curtir a Legião Urbana

‘Dois’

Lançado em 1986, com um gostinho de The Smiths, conforme crítica publicada no jornal O Estado de S. Paulo à época, o disco conta com músicas que se tornaram clássicos da Legião Urbana, como “Daniel na Cova dos Leões”, Quase Sem Querer” e, claro, o single “Eduardo e Mônica”. Mesmo com todas essas músicas, porém, há que se destacar a deficiência instrumental dos músicos: é tudo muito simples, quase barrela. O que, verdade seja dita, não impediu o LP de virar uma obra marcante.

‘As Quatro Estações’

É o disco mais vigoroso da discografia dos legionários. Nele, há faixas trabalhadas, como “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, canção que esbanja mais de seis minutos de duração, e o hit que até hoje é tocado pelo Brasil, nas rádios e nas plataformas de streaming: “Pais e Filhos”. Sem contar, claro “Há Tempos”, “Meninos e Meninas” e “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”. Em relação aos anteriores “Que Pais É Esse?” e “Dois”, é o álbum mais maduro da Legião e, de quebra, o melhor.

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