BB King está no centro do palco com a Lucielle pendurada no pescoço. Com olhos fechados, vestindo um bem cortado terno azul e dedos da mão esquerda deslizando pelas notas da guitarra, como se estivessem dialogando na companhia da velha amiga a respeito do racismo norte-americano, o músico canta o refrão de “Why I Sing The Blues”, um hino antirracista: “Pessoal, eu já paguei o preço/ Eu senti o blues quando me trouxeram de navio/ Havia homens sobre mim/ E muitos com chicotes nas mãos.”
Eu estive na linha, caído no salão do conselho. Foi um eu-lírico como esse - o mesmo que distorce as notas da Lucille – ao qual o poeta Jean Cocteau considerou a única contribuição autêntica de inspiração popular à literatura produzida no século 20. “Um bom veículo para uma narrativa de qualquer tamanho. Ao mesmo tempo, é mais dramática: os dois primeiros versos criam a atmosfera de modo claro pela repetição e o terceiro desfere o golpe”, diz, acrescentando que a linguagem do blues é “enganosamente simples” e é uma “comunicação certeira para apresentações ao vivo”.
Estava um calor de rachar. Céu azul, um azul brilhante, simpático, alegre. Se você estivesse batendo perna por Nova Iorque, na região do Mount Morris Park, no Harlem, num domingo qualquer de 1969, talvez encontrasse uma multidão. Havia nas esquinas vendedores de comida, crianças correndo de um lado para o outro, famílias grelhando carne, pessoas curtindo o sol, conversando umas com as outras, sorrindo de piadas e ouvindo a música de Nina Simone, Stevie Wonder, Sly and Thé Family Stone, Max Roach, The 5th Dimension, Gladys Knight & The Pips, Mahalia Jackson.
“Summer Of Soul”, documentário dirigido por Amir “Quest Love” Thompson, mostra tudo isso para aqueles de nós que não tiveram a chance de estar no Harlem Cultural Festival. O diretor de cinema Hal Tulchin, 95, pediu que as câmeras estivessem bem posicionadas para captar o momento em que cada artista subisse ao palco, que precisava ser colocado em frente ao sol, porque não havia grana que custeasse um equipamento gigante e, assim, a posteridade teria o registro da multidão cantando e dançando a 163 quilômetros de um outro festival enorme realizado numa fazenda.
Sim, era Woodstock. Esperto e ciente da grandeza do evento criado por Michel Lang, Artie Kornfeld, Joel Rosenman e John Roberts, Tulchin acreditava que uma eventual comparação entre os dois poderia ajudá-lo a vender o projeto como uma espécie de dupla-face, com um completando o outro e vice e versa. Mas ninguém botou fé, as imagens ficaram no sótão ao longo de cinco décadas e a cultura pop achou, nesses anos, que as preciosidades daquele tempo ficariam a cargo de “Gimme Shelter”, doc aclamado em Cannes dos diretores Albert Maysles, David Maysles, Charlotte Zwerin.
Se “Summer Of Soul” fosse um filme direcionado apenas a estudiosos da música soul, ainda assim já chegaria aos cinemas e streamings como um clássico, porém o documentário é mais do que isso: é um ato de amor à primeira vista. Tem uma visão vibrante e vital para a cultura pop de uma década marcada pelos assassinatos de John Kennedy, Malcom X, Martin Luther King e Robert Kennedy e pelos primeiros anos de Richard Nixon à presidência dos EUA, onde a Guerra Vietnã, em vez de parar, obrigava negros a irem para a Ásia morrer no front e atirar em seus semelhantes.
Com suas lentes, Hal Tulchin conseguiu captar Stevie Wonder, um jovem de 19 anos, pulando diante do teclado que tão bem emitia notas de resistência e ali aventurou-se a mandar ver um solo destruidor na bateria, Nina Simone transformando “Bacelas Blues” no equivalente a uma punhalada de Muhammad Ali, David Ruffin, já fora do The Temptations e conhecido por “My Girl”, tocando uma única nota por catárticos vinte segundos antes de entrar em cena um grito autêntico de um soul-man, Sly e banda lembrando que funk é sem dúvida um verbo de resistência… Foi brilhante!
Trilha sonora
Essa era a trilha sonora de uma década de luta pelos direitos civis, com blues, soul, funk, R&B e afro-latino. Como se fosse uma crônica dos loucos anos 60, “Summer Of Soul”, filme dirigido pelo músico e produtor líder da banda The Roots, não se resume apenas em retratar a história de como o Harlem Cultural Festival virou um símbolo, porém nos oferece a chance de compreender o contexto sócio-histórico em torno dele, com uma América branca, em sua fúria assassina, versus a potência da música negra, feita por quem não tinha vergonha de cantar o sofrimento, como o músico BB King.
Produzido por Tony Lawrence e com o apoio do prefeito de Nova Iorque, John Lindsay, com segurança dos Panteras Negras, o Harlem durou seis fins de semana e a música tocada lá ainda hoje ecoa em nossos ouvidos. No entanto, “Summer Of Soul” não é o primeiro filme a enaltecer a música negra: “Amazing Grace”, um dos clássicos do gênero de documentário musical, cobriu as apresentações da cantora Aretha Franklin em 1972 na Igreja Batista Missionária, em Los Angeles. Está no Telecine.
Em termos de entrevistas para ampliar as vozes presentes na narrativa, “Summer Of Soul” reconstitui por meio de depoimentos espertos como a imprensa norte-americana relutou para usar a palavra “black” durante a cobertura do Harlem. A pioneira foi a jornalista Charlayne Hunter-Gault, então repórter do The New York Times, que precisou ter discussões calorosas com seus editores. Tudo isso, por óbvio, desconstrói a imagem oferecida durante anos pelo partido republicano: o que aconteceu naqueles finais de semana ali foi a celebração da luta a partir da linguagem da música.

Só pela diversidade, pela beleza, pela alegria, pelo espírito de resistência, pela luta já valeria a pena assistir a “Summer Of Soul”. Graças a esse filme fantástico - que chega ao Oscar em março próximo bem cotado para levar a estatueta não só de melhor documentário, mas a de melhor filme, principal categoria da premiação - podemos dizer que a música certa move uma sociedade à procura da revolução. “Summer Of Soul (…Ou Quando a Revolução Não Pode Ser Televisionada)” já nasceu clássico.
‘Summer Of Soul’
Diretor: Amir “Quest Love” Thompson
Gênero: Documentário
Gênero: 1h57
Disponível no Telecine
Assinatura do streaming
sai a R$ 15