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Morre em Paris jornalista Wilson Tadeu, intelectual de forte presença na comunidade europeia

Morreu nesta quinta-feira, 21, feriado de Tiradentes, em Paris, o jornalista e produtor cultural Wilson Tadeu da Silva, 62. Conforme a esposa do comunicador, Delúcia Narciso, ele sofreu mal súbito e foi encontrado sem vida. A equipe médica realiza exames complementares.

A família não decidiu se o corpo do jornalista será enterrado em Paris ou no Brasil.

Tadeu tinha acabado de chegar de uma viagem de um mês aos Estados Unidos, onde percorreu parte do país de trem e bicicleta. Segundo a família, apresentava estar bem de saúde, com exames em dia, e desejava escrever um livro sobre a bicicleta que o suportou nos EUA. “Eu escrevi que as coisas, os objetos têm alma. Então esta bicicleta é minha. Sinto nela uma grande amiga. Não a trouxe de volta para Paris, evidente, pois aqui tenho duas e ainda a assinatura da bicicleta pública. Mas a deixei na universidade ( N.R: Fordham University, universidade católica de Nova Iorque), para os alunos da instituição, onde tenho amigos e voltarei para uma palestra e série de eventos”, enviou áudio para um dos familiares.

De boina e sentado, Wilson Tadeu (Tede) Silva apresenta Ciro Gomes para estudantes da Universidade de Paris: jornalista desenvolvia atividades na Europa

Radicado na Europa há quase duas décadas, o profissional dirigiu o Instituto Castro Alves, na França, onde realizava o intercâmbio e encontro da cultura brasileira e europeia.

O instituto também realizava o debate político, com sabatinas na Universidade de Paris, Sorbonne, com lideranças políticas e culturais brasileiras. Nas últimas eleições presidenciais defendeu Ciro Gomes, com quem estabeleceu contato na França e o acolheu logo após o segundo turno das eleições de 2018. Agora, defendia novamente uma terceira via para o país, com a possibilidade de ela ser representada pelos ex-magistrados Sérgio Moro ou Joaquim Barbosa.

Uma das publicações do jornalista: livro foi lançado em inglês e trata do desencanto da esquerda no mundo: corpo de Lênin como metáfora

Em artigos, o jornalista denunciava tanto a era de corrupção do PT como o novo conservadorismo de Jair Bolsonaro, que provocava, segundo ele, a “corrosão da imagem do Brasil no exterior”.

Wilson Tadeu - que assinou suas obras literárias, filmes e discos com vários pseudônimos - escrevia reportagens e coberturas para o DM e outros órgãos de comunicação.

Filho de Divina Alves e Elvaldir Gomes, já falecidos, Tadeu é irmão dos jornalistas e advogado Ulisses Aesse e Welliton Carlos, atuantes no Diário da Manhã, e a designer Sara Silva, que reside nos Estados Unidos. Com Sara, passou suas últimas semanas, na Califórnia. Deixa quatro filhos: Krishna Nathara Lacerda e Wilson Lacerda, do primeiro casamento, e Yasser Nds e Dandara Narciso do atual.  

Tadeu era assíduo participante do Festival de Cannes e acompanhava os movimentos populares da França. No Brasil, morou inicialmente em Goiânia, onde cursou jornalismo na Universidade Federal de Goiás (UFG) – faculdade abandonada nos últimos anos após receber convite para trabalhar em Brasília.

Ao lado do arquiteto Oscar Niemeyer, com quem cultivou amizade: passeio de ônibus em Bras´ília para reconhecer as mudanças na Capital

Nos anos 80, atuou no jornal “Última Hora” e “Diários Associados” e em seguida editou uma rede de comunicação no Norte do país. Trabalhou como assessor de José Aparecido de Oliveira, governador do Distrito Federal e depois ministro da Cultura. Na gestão do então presidente José Sarney foi nomeado delegado das comunicações do Tocantins.

Carreira em Brasília ocorreu ao lado de José Aparecido e Sarney

Wilson Tadeu foi grande amigo e entusiasta da atuação de José Aparecido, que foi embaixador do Brasil e jornalista. Para Tadeu, a política deveria ser esfera de homens que têm a cultura como fundamento de vida, caso de Aparecido, já que era civilizado o bastante para negociar e entrar em acordo com noção de "equidade". Nos anos 90 morou no sudeste brasileiro e atuou no cenário cultural do Rio de Janeiro e São Paulo, onde produziu eventos na Galeria do Rock e Teatro Municipal. Organizou movimentos sociais e participou de coletivos de cultura nestes estados, lançando revistas temáticas de cultura e política. Ao lado da esposa, que o ajudava na produção, lançou discos de rock com conteúdo crítico, livros e filmes. “Sasha, What Is To Be Done?”, um dos livros publicados pelo jornalista e assinado como S.T Wilson, escrito em inglês, é uma surreal comédia sobre o fetiche da esquerda com o cadáver de Lenin. O livro teve lançamento físico nos EUA e distribuído nas plataformas digitais.

https://www.amazon.com/Sasha-What-Be-Done-Wilson/dp/1521391238#:~:text=%22Sasha%2C%20What%20Is%20To%20Be,interesting%20trip%20around%20the%20world.

Segundo resumiu Wilson em entrevista, “órfãos da guerra fria, indignados com a possibilidade de enterrarem ou queimarem o corpo do líder russo Lenine, partem da Península Ibérica (Aveiro, Coimbra, Viseu e Salamanca) para “salvarem” (sequestrarem) o corpo embalsamado em Moscou”.

O filme “Matriculas Abertas, Vagas Limitadas”, longa-metragem de 2011, patrocinado pela Petrobras, tratava do respeito à diversidade sexual, com participação de atores de oito nacionalidades.

Jornalista ao fundo, de boina, em Paris, com familiares: intelectual vivenciou os círculos literários e cinematográficos franceses das últimas décadas

Após a morte do amigo jornalista Helvécio Cardoso, em novembro do ano passado, Tede comentou que a vida era sempre “uma certeza de dádiva” e uma suspeita “surpresa”. Ao lado de Helvécio, que atuou no DM, realizou vários eventos em Paris. Conhecia o amigo da infância no setor Fama, em Goiânia, de onde partiram para “viver” o jornalismo.

Comovida com a morte do marido, a esposa Delúcia lembrou que Tede sempre brincava que desejava morrer depois dos 110 anos, com direito a obituário no “Libé” – jornal francês Liberation.

Diretor de cinema Carlos Valls, amigo de Tadeu da época em que atuaram juntos com o governador José Aparecido, diz que entrava em contato com o amigo todos os dias pelas novas ferramentas de comunicação. “Falei com ele ontem. Estou sem palavras”.

No início dos anos 1980, Wilson Silva na Universidade Federal de Goiás (UFG), onde participou do movimento estudantil, com Geraldo Reis: livros nas mãos

Segundo Valls, o amigo entrou em seu perfil do Facebook horas antes de morrer e deixou o comentário: “Carlos Valls, estivemos juntos no histórico show do Legião Urbana no Estádio Mané Garrincha, quando Renato Russo desabafou contra mediocridade dominante da época no DF em que ele tentava criar o novo. Ele aproveitou que um bestinha jogou uma latinha no palco, interrompeu o show, fez um discurso e foi embora com a banda. Mas a obra ficou e é um patrimônio nosso, mais valorizada ainda diante de tudo que veio depois!”.

Apesar de jornalista, Tadeu se dizia no momento mais ativista e militante do que profissional da imprensa, já que “os tempos são outros e exigem posturas” diante de tudo. No jornalismo, era admirador dos editoriais de Batista Custódio e da contundência de Alberto Dines, além da passagem de Robert Ezra Park, sociólogo americano da Escola de Chicago, do jornalismo para a sociologia.

Na política, estava decepcionado com a maioria dos políticos, mas fazia questão de falar que “apesar de não pactuar com os valores e linha ideológica, via em Ronaldo Caiado alguém que não tremia os lábios nem mudava o semblante ao falar a palavra corrupção”. Para ele, era necessário enxergar integridade e autenticidade em qualquer espectro ideológico.

A irmã Sara, que já participou com Tadeu do Festival de Cannes e outros eventos culturais europeus, se diz chocada com tudo, já que estava com o irmão dias antes. “Ele preparava um encontro da família em Paris, no Natal.”

Ao lado da irmã Sara, em Oakland, Califórnia, há três semanas

Nos EUA, foram à ópera e visitaram artistas americanos. “No último dia aqui na Califórnia, pegou uma bicicleta que comprei há dez anos e foi embora com ela. Seguiu me ligando e enviando fotos dos estados em que cruzava. Ligava e dizia: tive uma epifania e então relatava”, recorda Sara, que lembra da infância difícil do irmão na "Vila Operária", em Goiânia. "Desde criança trabalhava muito para ajudar minha mãe e pai".

A Associação Goiana de Imprensa (AGI) lamentou a perda. O presidente da instituição, jornalista e advogado Valterli Guedes, lembrou as origens de Wilson no movimento estudantil e sua importância na geração que representou. “A imprensa goiana perde uma das suas mentes mais brilhantes desta geração, que encerra uma carreira vitoriosa na defesa das liberdades civis”, diz.  

Presidente do PSD em Goiás, ex-deputado federal Vilmar Rocha, lamentou o falecimento e reiterou aos irmãos do jornalista que "devem pacificar o coração e entender o destino da vida". O ex-governador Marconi Perillo (PSDB) transmitiu sentimentos à família e lamentou a perda do jornalista, que conheceu através das publicações.

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