Artigo: O perigoso jogo sectário da Arábia Saudita
Diário da Manhã
Publicado em 9 de janeiro de 2016 às 06:06 | Atualizado há 9 anosNOVA YORK — Quando a Arábia Saudita executou o clérigo xiita e dissidente político Sheikh Nimr al-Nimr, no sábado, os líderes do país sabiam muito bem que, ao fazê-lo, irritariam os velhos inimigos no Irã. A verdade é que a corte real de Riad provavelmente contava com isso. E a deterioração das relações foi rápida: em Teerã, manifestantes invadiram a embaixada saudita; os sauditas, em retaliação, cortaram relações diplomáticas com o país. Outras consequências graves poderão ocorrer, possivelmente até uma guerra.
Por que a Arábia Saudita quis uma coisa dessas agora? Porque o reino está sob pressão: o preço do petróleo, da qual a economia depende totalmente, está despencando; a retomada das relações entre iranianos e norte-americanos ameaça diminuir a posição de destaque que Riad tem na política regional; o Exército saudita está perdendo a guerra no Iêmen.
Nesse contexto, uma desavença com o Irã deixa de ser um problema para se tornar uma boa oportunidade que, segundo a realeza, pode ajudá-la a acabar com a dissidência interna, conquistar o apoio da maioria sunita e colocar os aliados regionais ao seu lado. Em curto prazo, pode até estar certa, mas, com o tempo, estimular o sectarismo só vai dar mais poder aos extremistas e desestabilizar ainda mais uma região já explosiva.
Na última década, o governo saudita se voltou para o Irã e os xiitas toda vez que precisou de um bode expiatório fácil. O sentimento anti-iraniano e antixiita há muito é fomentado entre os extremistas religiosos do reino, só que hoje ele é a base da identidade nacional – detalhe perigoso para a comunidade xiita interna, que se calcula responder por dez a quinze por cento da população, e para o Oriente Médio como um todo.
Essa não é a primeira vez que os xiitas sauditas são atacados — o sectarismo do governo vem do início do século XX; acontece que, até recentemente, as autoridades conseguiam equilibrar táticas rígidas com esforços para dar espaço aos líderes comunitários e assim minimizar os perigos desse posicionamento.
Depois que a invasão do Iraque, em 2003, ocasionou uma nova onda de tensão entre sunitas e xiitas no Oriente Médio, Riad começou a mudar sua atitude. Em 2011, quando o mundo árabe explodiu em protestos populares, o governo saudita reforçou seu compromisso com o confronto sectário. Os xiitas, que compõem a maioria da população do vizinho Bahrein, se ergueram contra a monarquia sunita; a minoria xiita saudita também foi para as ruas, pedindo reformas políticas.
Evocando o Irã e os xiitas como uma ameaça terrível, o governo enquadrou tudo em termos sectários — de manifestações nacionais à intervenção no Iêmen — e, no processo, procurou não só demonizar um grupo minoritário, mas também enfraquecer o apelo da reforma política e dos protestos.
Nimr tinha um longo histórico de desafio à família real saudita, mas foi seu ativismo pós-onze de setembro que levou à sua execução. Depois de denunciar, de forma desafiadora, a discriminação antixiita, foi perseguido e detido pela polícia em julho de 2012, sob a alegação de que teria atirado contra os oficiais. Oficialmente, Nimr foi executado por insurreição e outras acusações; na prática, foi morto por criticar o poder. Ele não era liberal, mas deu voz ao tipo de desaprovação que a realeza mais teme e menos tolera.
Apesar disso, a execução foi mais importante pela mensagem que transmitiu aos aliados domésticos do reino e aos prováveis futuros dissidentes. O surgimento do sentimento antixiita ao longo da última década não é só usado para acabar com a briga dessa minoria por mais direitos políticos; ao silenciar seus apelos pela democracia, Riad também enfraquece a exigência mais ampla por reformas políticas ao rotular os manifestantes de “não-islâmicos”. Muitos reformistas sunitas que já cooperaram com os xiitas no passado, desde então deixaram de fazê-lo.
As autoridades têm todos os motivos para se preocupar com os novos pedidos de reforma: cerca de uma semana antes da execução de Nimr, anunciaram um déficit de quase US$100 bilhões no orçamento nacional para 2016. Se o preço do petróleo continuar caindo, logo serão forçadas a cortar gastos com programas sociais, a água, a gasolina e os empregos subsidiados – ou seja, a essência do contrato social que une, ainda que informalmente, governantes e governados. A morte de um membro de destaque de uma minoria religiosa desprezada desvia a atenção da pressão econômica, que é cada vez maior.
O perigo da incitação sectária e anti-iraniana atual – da qual a execução de Nimr é apenas uma parte — é que ela é incontrolável. Como se vê claramente na Síria, no Iraque e em outros países mais distantes, as hostilidades ganharam vida além dos que os arquitetos do reino têm capacidade para controlar. Certamente esse já provou ser o caso na Arábia Saudita, onde terroristas que apoiam o Estado Islâmico promoveram vários ataques suicidas em mesquitas xiitas no último ano.
O verdadeiro problema não é apenas que os saudistas estão dispostos a viver com o sectarismo violento; agora são obrigados a isso. O fato de seus líderes terem aceitado a filosofia de maneira tão inconsequente sugere que não há muita opção – o que deve ser assustador, considerando que mais coisa deve vir por aí. E também muito esclarecedor para aqueles que acreditam que a Arábia Saudita é uma força de estabilidade no Oriente Médio — porque não é.