As vantagens de não ser invisível
Redação DM
Publicado em 16 de maio de 2017 às 02:47 | Atualizado há 5 meses
No Brasil inteiro, a população em situação de rua está se organizando para lutar por seus direitos. Goiânia também presencia essa luta, que começou atrasada em relação a outros grupos, como os de São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande Sul e alguns Estados do Nordeste, como a Bahia.
Em Porto Alegre, capital gaúcha, por exemplo, os moradores de rua têm até um jornal trimestral, o Boca de Rua. Publicado com a ajuda de algum órgão público? Não exatamente. Uma ONG fornece condições para que a própria população de rua discuta a pauta, apure as notícias, fotografe e escreva as reportagens. Depois, vem um editor, passa a régua e envia para a gráfica.
A tarefa de lutar pelos direitos não é fácil, por duas razões: primeiro porque o Estado não é lá muito garantidor dos direitos de qualquer minoria. O que o Estado sabe fazer mesmo é reunir forças para garantir os direitos de grupos já privilegiados. Isso foi dito por vários moradores de rua, de todos esses Estados citados e mais outros, como Alagoas e Pernambuco, reunidos no V Seminário Povos de Rua – Equidade Social: Garantia de Direitos e Políticas Públicas, que ocorreu em Goiânia em 26, 27 e 28 de abril.
O evento foi realizado na Praça do Trabalhador e no auditório da Câmara de Vereadores pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) em Goiás, em parceria com a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO). De acordo com o coordenador do MNPR goiano, Eduardo de Matos, eles se organizam para alcançar visibilidade, assumir o próprio protagonismo e assim reivindicar seus direitos.
Em Goiás, o movimento da população de rua procura acompanhar o ritmo e o modo de lutar das populações de outros Estados que entraram no movimento no começo dos anos 2000. Na capital goiana, as articulações do movimento tiveram início no final de 2012, em meio àquela onda de assassinatos de moradores de rua, e o primeiro seminário foi realizado em 2014. Para chegar ao quinto, houve muito esforço e trabalho, segundo os idealizadores.
Nos dois primeiros dias, as ações do seminário foram feitas debaixo de uma tenda instalada de frente ao prédio abandonado da antiga Estação Ferroviária de Goiânia. Lá, os moradores de rua tiveram oficinas de musicalidade e de artes plásticas e rodas de conversa sobre redução de danos (conscientização de que a droga é um elemento nocivo, embora dê prazer e aplaque momentaneamente o sofrimento diário, e que consumir o menos que se puder pode ser um ganho para a própria sobrevivência).
Protagonismo
O protagonismo exigido pelos moradores de rua foi bem exercitado no seminário. Muitos deles relataram suas dificuldades, mas também deixaram claro que estão descontentes com os agentes públicos por não conseguirem resolver as demandas de direitos e de políticas públicas. Neste sentido, os grupos dos outros Estados se demonstraram mais atuantes que os goianienses.
“Esta é uma das razões porque foram convidados, para mostrar à população de rua de Goiânia como se constrói uma força de luta”, disse Wiley Pereira da Silva, coordenador de Promoção de Equidade em Saúde, do departamento da Secretaria Estadual de Saúde ligado ao SUS, e um dos parceiros idealizadores do evento.
Um exemplo de como eles levam a sério a conquista do protagonismo de suas vidas ocorreu no terceiro dia, na formação da mesa-redonda, no auditório da Câmara Municipal. Havia 12 pessoas sentadas no palco do auditório, de frente para o público, formado em sua maioria por moradores de rua.
Nenhum dos moradores de rua estava lá, sentado junto com as autoridades e militantes da causa. Um rapaz de Maceió e outro de Recife se levantaram e cobraram a presença de um colega de Goiânia na composição da mesa. A reivindicação foi atendida. Nos bastidores, os idealizadores fizeram a mea culpa. Era necessário que um deles estivesse na composição da mesa.
Indiferença
Como em qualquer população, a heterogeneidade é uma das marcas entre os moradores de rua. Cada um tem sua personalidade. Uns são mais duros na fala e no trato ou na postura diante da vida. Já outros são mais dóceis (cuja docilidade fica escondida por trás da realidade que enfrentam). Muitos fazem uso de álcool, alguns de outras drogas, como o crack, mas há também os que permanecem sóbrios.
Daniel Paz dos Santos, 46 anos, é gaúcho de Torres e mora em Florianópolis desde 2000. Ele se mudou para lá com a mulher e os dois filhos. Afundado no alcoolismo, ao ser pressionado pela mulher para escolher entre a família e o álcool, não teve dúvida. “Escolhi o álcool e fui para as ruas em 2006”.
Naquele ano, dois companheiros morreram de frio. Ele e outros então começaram a se movimentar contra o descaso dos agentes públicos. “Como em quase todos os lugares, em Florianópolis, o governo é higienista e preconceituoso. Não gosta nem de falar sobre a população de rua”, diz.
Santos morou quatro anos na rua. “Foi quando conheci minha atual companheira. Juntos, conseguimos nos reerguer. Voltamos algumas vezes para a rua, mas hoje moramos de aluguel, trabalhamos e continuamos na luta para defender os companheiros”. Ele fabrica pulseiras, colares e anéis artesanais para vender.
De acordo com Santos, o mais difícil de aguentar é a indiferença das pessoas. “É o que mais dói”. Segundo ele, a violência é constante, não só por parte das abordagens policiais, mas também pelos olhos furtivos dos transeuntes, como se negassem sua existência.
Durante o seminário, nas rodas de conversas, entre um testemunho e outro, encenações dessa violência eram feitas pelos próprios cidadãos vulneráveis. Numa delas, o morador de rua procura uma calçada para dormir e é espancado. Procura a polícia e leva mais uns tabefes. Procura a assistência social, mas não adianta nada, porque não há ninguém para atendê-lo.
Para aguentar a solidão
Avelismar de Oliveira tem 30 anos, mas parece ter uns 40. Nasceu e se criou em Trindade, e mora nas ruas de sua cidade natal há dois anos. “Entrei no mundo do álcool muito cedo, e para não magoar minha família decidi ir para as ruas”, diz.
De temperamento tranquilo, Avelismar não parece querer machucar ninguém. Seu rosto traz as marcas da violência, com cicatrizes causadas por socos dos próprios colegas. “Quando eles bebem ficam agressivos”, diz. Segundo ele, quando chega a noite, a vontade de beber é maior. “Para aguentar a solidão”.
O mundo das ruas é por natureza violento e excludente. Avelismar cata latinhas e as vende para o serviço de reciclagem. “Tudo na rua é difícil, até catar essas latinhas”, diz. “Muitas vezes, a gente está trabalhando, catando as latinhas, e vem um policial perguntar o que estamos fazendo, às vezes xinga a gente, às vezes revista com truculência procurando drogas”.
Seletividade
A população de rua vive encurralada numa violência rotineira vinda da própria condição, dos elementos do tráfico, da Polícia Militar, da Guarda Metropolitana, da P2 (polícia à paisana, que ninguém nunca sabe se é PM ou Civil, segundo relato de um homem que não quis se identificar), além da violência de seguranças de lojas.
No segundo dia de seminário, uma viatura da Polícia Militar, com dois policiais, abordou sete pessoas que estavam próximas do evento: seis homens e uma mulher. Ela estava sentada debaixo de uma palmeira, fazendo sua refeição. Os homens foram obrigados a ficar de pernas abertas e mãos cruzadas atrás da cabeça.
Ninguém estava armado, nem com facas, que é o que a polícia costuma alega encontrar nesses chamados baculejos em moradores de rua. “A polícia não se excedeu porque tem muita gente aqui”, disse um homem que participava do encontro. Ou seja, quando começou a juntar gente no local da abordagem, os abordados passaram a ter visibilidade.
O defensor público Saulo Carvalho David conversou com os policiais. “Esses agentes precisam compreender a necessidade de proteção da população de rua, e não criminalizar a pobreza”, disse mais tarde. “Conversando com o policial, com muito respeito, eu o agradeci por me mostrar na prática a seletividade do direito penal ocorrendo ali”, ironizou.
Essa vulnerabilidade dá aos moradores de rua a consciência de que viver é momentâneo, e por isso deve-se viver um dia por vez. Implica-se aí sanar os problemas do agora, apaziguar a dor, entorpecer a memória, buscar um alívio que também passará. Vivem sem saber muito bem se na manhã seguinte ainda estarão vivos.
Referências de pessoas vivendo nas ruas que anoiteceram, mas não amanheceram são inúmeras em Goiânia. O próprio tenente Delcione, que comandou a abordagem aos moradores de rua na Praça do Trabalhador, junto com o soldado Chaveiro, lembrou que no domingo anterior, dia 23 de abril, um homem esfaqueara outro a poucos passos dali.
Mas eles morrem não só da violência dentro da própria população, como foi nesse caso. Além da série de extermínios entre 2012 e 2013, os moradores de rua continuam sendo assassinados. No dia 28 de fevereiro deste ano, quatro foram mortos a tiros no Setor Esplanada dos Anicuns, região Oeste de Goiânia. No dia 6 de março, um moça foi assassinada a tiros, enquanto dormia, também na região Oeste da Capital.
Lutar pelos direitos não é fácil
Durante encontro, moradores de rua reclamaram do eterno retorno das promessas do poder público; Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) participou apenas do último dia
Trabalhador
No segundo dia de seminário, houve também uma apresentação do Teatro do Oprimido. A princípio, o ator Otto Caettano, que estudou com Augusto Boal (1931-2009), criador do método do Teatro do Oprimido, faria uma apresentação ao ar livre com a intenção de dar um abraço simbólico no lugar onde estava o Monumento ao Trabalhador.
Instalado em 1959 no final da Avenida Goiás, o monumento foi totalmente retirado de lá em 1987, depois de sua destruição ter começado em 1969 por integrantes do Comando de Caça aos Comunistas. Em seu lugar, foram plantadas duas fileiras de palmeiras, em torno das quais seria dado o abraço coletivo.
Mas uma chuva pesada naquela tarde impediu Caettano de sair de baixo da tenda. Ele dançou, cantou, declamou, atuou, evocou o protagonismo do trabalhador ali mesmo. O Teatro do Oprimido foi criado para buscar uma representação da realidade a partir do ponto de vista dos oprimidos. É a utilização da arte como ferramenta política.
A razão desse ato político por parte dos moradores de rua, poucos dias antes do 1º de Maio, é clara, para repetir aqui a proposição de Matos. Uma das reivindicações do movimento é a de ver sua população reconhecida como trabalhadora, o que a maioria absoluta de fato é. “Mais de 70% dessas pessoas trabalham para sobreviver. Não são vagabundos violentos que saem por aí roubando”, diz Matos.
Para ter esse reconhecimento de classe trabalhadora, a população de rua terá primeiro de quebrar o estigma de “vagabundos, violentos e drogados”. Deve fazer isso porque, de fato, entre eles há quem seja vagabundo, violento, drogado, mas são tipos que existem em qualquer lugar, na rua ou nas outras sociedades organizadas, diz Matos.
Este é o grande desafio do movimento. Matos morou nas ruas durante dez anos. Sabe bem do que está falando. Hoje, ele e seus companheiros entendem que a invisibilidade criada pela indiferença das pessoas é a principal barreira.
Falta assistência
A visibilidade, por outro lado, faz os atores do poder público agirem com mais acuidade pelos direitos que eles têm. Esta é outra reivindicação clara. Para construir a plataforma de visibilidade e de luta pelos direitos, o movimento busca parceria com agentes públicos que sabem ouvir e com outras organizações e apoiadores do movimento, como voluntários de várias áreas sociais.
Além dos idealizadores do evento, em parceria com o MNPR (DPE-GO, Coletivo Liberdade, Coordenação de Promoção de Equidade em Saúde e Superintendência de Políticas de Atenção Integral à Saúde, ambos ligados ao SUS e à Secretaria de Estado da Saúde de Goiás), vários atores públicos enviaram seus representantes para o V Seminário Povos de Rua.
Mas uma ausência foi especialmente sentida nos dois primeiros dias do evento, a da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas). No terceiro, dia a Semas enviou uma pessoa para representar a secretária Maristela Alencar, mas não escapou das críticas.
A psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad), Estefânia Cherulli Fernandes, chamou a atenção para a ausência da Semas no evento. “A Defensoria Pública e o MNPR precisam tomar uma posição diante disso.” Ao longo debate, os moradores de rua também protestaram e pediram uma carta de repúdio à secretaria.
Estefânia reclamou ainda do atendimento de baixa qualidade prestado pelos CAPS de Goiânia aos cidadãos que moram nas ruas. Ela é um dos raros servidores da saúde que atendem moradores de rua no CAPSad pelo viés da equidade social (que é atender a todos sem distinção social, com a mesma qualidade de atendimento e cuidados).
Cobranças
Os debates realizados no terceiro dia, com duas mesas redondas, serviram como plataforma de cobranças. Estavam presentes Ivana Farina, procuradora de Justiça, Patrícia Antônio, do Ministério Público de Goiás, Lêda Borges, secretária Estadual de Cidadania, frei dominicano Marcos Sassatelli, militante das causas das minorias em Goiânia, Saulo Carvalho, da Defensoria Pública de Goiás, Luana Malheiro, antropóloga e redutora de danos de Salvador, Veridiana Machado, psicóloga e redutora de danos de Porto Alegre, Rafael de Sá Menezes, da Defensoria Pública de São Paulo, e Eduardo Motta, psicólogo e educador social de Goiânia.
Os moradores de rua reclamaram do eterno retorno das promessas do poder público desde o primeiro Seminário Povos de Rua em 2014, sem que nada seja feito na prática. Cobraram ação do Defensoria Pública e do Ministério Público contra a violência da polícia, reclamaram da ausência de banheiros públicos na cidade. Cobraram a abertura da Casa da Acolhida 2, inaugurada no final da gestão de Paulo Garcia, mas não autorizada a abrir pela atual gestão de Íris Rezende. Reclamaram do atendimento no Centro Pop, que segundo eles, é péssimo e feito de má vontade pelos funcionários.
A invisibilidade da população de rua é ruim e estranha para seus membros por um motivo claro: eles são invisíveis para a sociedade e para a maioria dos agentes públicos, mas não para a polícia, nem para grupos de extermínios.
Atualmente, existem cerca de 2 mil moradores de rua em Goiânia, segundo dados de Eduardo de Matos. Buscar seu protagonismo, mostrar-se na mídia, organizado e militante, dá a eles as vantagens de estarem sendo vistos, de cobrarem seus direitos, ir conquistando-os ao longo da luta e de se defenderem da violência. É nisso que Matos e seus companheiros – uns mais céticos, outros mais esperançosos – acreditam.