Carta a uma mãe de desaparecido político
Diário da Manhã
Publicado em 14 de maio de 2017 às 01:20 | Atualizado há 4 meses
- Maria de Campos Baptista morreu ao tentar encontrar vestígios dos restos mortais de seu filho em arquivos da União
- Rosa Guimarães chegou a ir a um Natal, em Brasília, no PIC, em 1973, como haviam lhe informado os militares
- Dona Santinha queria apenas o corpo do seu filho Divino Ferreira de Souza, morto na guerrilha do Araguaia, em 1973
- Já Zuleika Celestino morreu sem poder dar um sepultamento ao filho de acordo com os rituais religiosos da família
– Mãe!
No céu ou nas estrelas, onde a senhora estiver, gostaria de informar-lhe que, mesmo depois de instalada a Nova República, em 1985, com a promulgação de uma nova Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, pelo ‘senhor diretas já’, Ulysses Guimarães, assim como pela abertura dos arquivos da repressão política e militar, 1991, e da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade [CNV], em 10 de dezembro de 2014, não foi possível encontrar indícios de onde poderiam estar enterrados os restos mortais do seu filho. Lamento. Muito…
– Não chores!
Tardia, a Justiça de Transição, no Brasil, País de dimensão continental, que sofreu, em 1964, um golpe de Estado civil e militar, como aponta o cientista político uruguaio, René Armand Dreiffus, já morto, é letra morta para as mães dos desaparecidos políticos. Centenas de opositores da queda de João Belchior Marques Goulart, um nacional-estatista em sua versão trabalhista, conceito formulado pelo historiador Daniel Aarão Reis Filho, que a senhora, de formação humilde, não chegou a conhecer, desapareceram nos porões da ditadura.
– As mães da Argentina choram por 30 mil desaparecidos, além de 500 netos sequestrados.
Tempo passa
O tempo passou. Desde que a senhora partiu. Familiares de mortos e desaparecidos receberam atestado de óbito da União. Um testemunho de que o seu filho foi morto por agentes públicos, pagos com dinheiro do contribuinte, com a missão estratégica de cuidar da segurança dos cidadãos. O que é pior: em dependências do Estado. A lei 9.140. Depois, o Ministério da Justiça criou uma Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos e uma Comissão de Anistia, para reparar, com indenizações, vítimas dos fardados e civis pós-1964. Presos, torturados, demitidos, exilados, que tiveram as suas vidas destruídas por um Estado de Exceção.
– Um passado que nunca passa, mãe…
O Direito Internacional dos Direitos Humanos condenou o Brasil. Por não revelar a verdade sobre a guerrilha do Araguaia, não entregar os corpos dos desaparecidos políticos do conflito organizado pelo PC do B, uma dissidência do PCB, legenda fundada em março de 1922, que completou, em 2017, 95 anos de história, assim como por não punir os responsáveis por violações dos direitos humanos à época. Torturas, fuzilamentos, cabeças decepadas… Histórias que seriam melhor que a senhora não soubesse. Para não sofrer. As mães nunca podiam sofrer
– Apesar disso, nada mudou.
Golpes frios?
É possível imaginar, que no século 21, um golpe depôs o presidente constitucional de Honduras, no ano de 2009, o nacionalista Manuel Zelaya, que refugiou-se na Embaixada do Brasil, em seu País? Ex-bispo progressista da Igreja Católica, Fernando Lugo foi afastado do poder, em um impeachment relâmpago, de apenas 24 horas, 2012. Ex-guerrilheira da VAR-Palmares, organização de luta armada contra a ditadura civil e militar, presa e torturada em janeiro de 1970, que teve um dente arrancado por um soco, Dilma Rousseff caiu sob um golpe, no Brasil, em 2016.
1954, 1964 em 2016. Parece que a História se repete
Trecho da carta
– O Brasil chorou… Eu também. 1954, 1964 em 2016. Parece que a História se repete. Agora, de forma mais sinistra.
Michel Temer, vice que conspirou para derrubar a camarada de armas Dilma Vana Rousseff, destituiu a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A Secretaria Especial de Direitos Humanos virou uma peça de decoração. O Supremo Tribunal Federal, sob o controle de Gilmar Mendes, ministro de linhagem conservadora, indicado por Fernando Henrique Cardoso [PSDB-SP], o ‘Príncipe da Privataria’, denunciado na Operação Lava Jato, recusa-se, mesmo à revelia do Direito Internacional, a rever ou dar nova interpretação à Lei de Anistia, de agosto de 1979
– Lei de Anistia que a senhora comemorou acreditando que, com a sua sanção, o seu filho retornaria à porta da frente de sua velha casa. Nada disso ocorreu, no entanto. Mais sofrimento.
Lei da Anistia?
Com o desapontamento que sofrestes com a Lei de Anistia, a abertura das celas e a volta dos exilados, que nada sabiam sobre o paradeiro do seu filho, veio à luta incansável pela abertura dos arquivos da repressão da ditadura civil e militar. O primeiro, o do Dops [Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo]. Um milhão de fichas. Dossiês. Recortes de jornais. Inquéritos. Processos Judiciais. Relatórios da Justiça Militar. Uma ‘Operação Limpeza’ havia sido feita no acervo. O que impediu a localização dos restos mortais dos desaparecidos.
– Eram tantos, não é mãe?
Marcos Antônio Dias Batista, ex-VAR-Palmares; Honestino Monteiro Guimarrães, ex-Ação Popular Marxista – Leninista, um racha da AP, que se incorporou ao PC do B, em 1972; Paulo de Tarso Celestino, companheiro de Heleny Teles Guariba, teatróloga, os dois guerrilheiros urbanos da Ação Libertadora Nacional [ALN], organização que adotou a estratégia de luta armada, fundada pelo velho carbonário baiano filho de um italiano com uma negra da etnia Haussá, morto em 9 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Um passado que nunca passa, mãe…
Trecho da carta
– Carlos Marighella, classificado pela Veja, como o inimigo número 1 do Governo Federal.
Os nomes não param. O ex-deputado estadual José Porfírio de Souza, um trabalhador rural que liderou a Revolta de Trombas e Formoso, em Goiás, pela posse da terra. Ele sumiu em 1973. Quem também não deixou rastros na poeira do tempo foi o seu filho, Durvalino de Souza, que acabou em uma manicômio. À época, os portadores de transtornos mentais eram tratados de forma bárbara, medieval. Nunca mais encontraram-no. Divino Ferreira de Souza, preso, torturado na Casa Azul, Região do Araguaia, teve o seu corpo desaparecido.
– O coronel Lício Maciel e o Major Curió, ainda vivos, poderiam esclarecer onde estariam os restos mortais de Divino Ferreira de Souza, guerrilheiro do PC do B. Concordas?
Maria Augusta Thomaz
Mãe! Recorda-se de reportagem publicada, com manchete de capa do jornal Diário da Manhã, fundado pelo jornalista Batista Custódio dos Santos, que lançara o Cinco de Março, em agosto de 1980, e que denunciava a morte e o sequestro das ossadas, com ocultação de cadáver de Maria Augusta Thomaz? A bela estudante de Filosofia da PUC [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo] que sequestrou um avião da Varig, em 1969, com uma bomba no colo, em Buenos Aires, desviou-o para Havana e fez treinamento de guerrilha, em Cuba.
– Ela ajudou a criar o Molipo e veio clandestinamente ao Brasil: 1971.
Maria Augusta Thomaz soltou bomba na Esso, atacou o Consulado da Bolívia, foi baleada, recuperou-se, veio para Goiás, refugiou-se na Fazenda Rio Doce, Rio Verde, acabou executada, ao lado de Márcio Beck Machado, na noite gélida de 17 de maio de 1973. Um dos acusados de ter participado da operação é Marcus Antônio de Brito Fleury, ex-diretor regional da Polícia Federal, ex-chefe regional do SNI, ex-superintendente do Dops [GO], capitão do Exército acusado de torturas por Tarzan de Castro e Hugo Brockes. É o principal suspeito da prisão, tortura, assassinato, ocultação de cadáver de Marcos Antônio Dias Batista, de 15 anos de idade
Herzog, Paiva e Zuzu
Clarice Herzog derramou lágrimas por Vladimir Herzog, jornalista, morto sob torturas, no DOI-CODI. A versão oficial do exército: suicídio. Uma farsa. Tal e qual a de Ismael Silva de Jesus, assassinado, em agosto de 1972, em Goiânia. Como não lembrar do sofrimento de Eunice Paiva, mulher do ex-deputado federal Rubens Beirodt Paiva, desaparecido em 1971, no Rio de Janeiro. Não podemos nos esquecer da saga de Zuzu Angel, estilista, que acabou morta pela repressão por buscar o filho já executado Stuart Angel Jones, ex-MR-8, de Daniel Aarão Reis Filho.
– Saudades! Porque você se foi? As mães não deviam morrer. Vou parar por aqui. Para acabar-me em lágrimas.
Renato Dias, 49 anos, é jornalista graduado pela Alfa, sociólogo formado pela Universidade Federal de Goiás, especialista em Políticas Públicas pela UFG, com curso de Gestão da Qualidade e mestrado em Direito e Relações Internacionais pela PUC – GO. É autor de oito livros-reportagem. As suas áreas de concentração são ditadura civil e militar, autoritarismo na América Latina, luta armada, socialismos e trotskismos. É irmão do desaparecido político mais jovem do Brasil, Marcos Antônio Dias Batista, VAR-Palmares, 15 anos de idade. A sua mãe, Maria de Campos Baptista, morreu em um suspeito acidente de carro, em Brasília, logo após sair de audiência, em 15 de fevereiro de 2016, com os ministro da Defesa, José Alencar, vice-presidente da República, e Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.