Cotidiano

Ensinamentos de Içami Tiba à educação

Diário da Manhã

Publicado em 10 de junho de 2017 às 02:07 | Atualizado há 4 meses

O problema central d’A República de Platão obviamente é a política. Mas, em Platão, a política fica totalmente sem sentido quando não possui uma base filosófica que ministre diretrizes para a vida social. Para isso, papel fundamental é atribuído à educação. No Górgias, outro diálogo fundamental, Platão nos mostra Sócrates sustentando porque Péricles, o maior estadista ateniense, não lhe merecia respeito. Péricles não educou o povo de Atenas, antes o perverteu, amoleceu a alma popular.

A humanidade não chegará ao mais elevado e sublime grau de desenvolvimento, propõe Platão, enquanto os filósofos não se tornarem governantes, ou enquanto aqueles que chamamos de governantes e dirigentes não se tornarem real e verdadeiramente filósofos, fazendo com que o poder político e a filosofia passassem desse modo às mesmas mãos.

A moderna crítica filosófica vê nesta proposição do apóstolo de Sócrates a glorificação da tecnocracia contemporânea, cujo poder se legitima pela posse de um suposto saber superior. Porém, não há como negar a pertinência do postulado socrático segundo o qual é o uso adequado da razão que permite ao homem conhecer a maneira correta de viver. Sócrates apresentava-se como um homem cuja vocação era levar seus concidadãos atenienses segundo os ditames da razão. “Uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”.

Rousseau afirmou que A República era o maior “tratado de educação que jamais se escreveu”. O papel da educação n’A República de Platão é determinante da própria forma de governo e de organização do Estado. Já não se discute hoje em dia que A República foi inspirada em Esparta, onde vigorava um peculiar comunismo, que, evidentemente, excluía os escravos. Em Esparta, os meninos eram apartados de suas mães ao chegar à idade de sete anos. Passavam a viver em casernas e, desde então, começavam a ser preparados para se tornar guerreiros. Não existia em Esparta a figura da família nucelar: papai, mamãe, filhinhos. O Estado era o pai de todos, e as mulheres gozavam de enorme liberdade sexual.

O ponto de partida do diálogo A República é a indagação sobre a justiça. Em que consiste ser justo? Investigar a natureza do justo é tarefa inglória. Os interlocutores de Sócrates , como a grande maioria dos seres humanos, encontram-se na caverna limitados à visão dos reflexos e das sombras e, presumivelmente, ao som dos ecos. A cidade aparece como uma balburdia de vozes discordantes, cada um gritando em favor de uma afirmação individual, egoísta, sem nenhuma compreensão adequada da essência e da necessidade do todo. A busca de um conceito de Justiça que satisfaça não apenas as contingentes exigências sociais, às circunstâncias do aqui e do agora, mas que paire esplendorosamente sobre todos e sobretudo como máxima universal, é a suprema ambição de Platão e de todo idealismo. Uma luta condenada a fracassar sempre e sempre toda vez que se aproximar da vitória. E que, no entanto, deve estar sempre recomeçando.

Se o jusfilósofo italiano Giorgio Del Vécchio, da escola neokantiana, estiver correto – e eu sempre acho que está – a Justiça não é uma categoria jurídica, e muito menos política. É uma virtude moral. Uma divindade, como dizia Calamandrei, outro jusfilósofo, que só se revela aos que nela creem. Por que deveríamos crer em algo tão metafísico como “justiça”? Para Del Vecchio, a justiça é uma intuição, um a priori ético, um “sentimento”. O que ele chama de “sentimento de justiça” é aquela intuição básica que cada indivíduo tem do que seja certo ou errado, juto ou injusto.

Podemos afastar, por obsoleto, o apriorismo de Del Vecchio, de manifesto viés kanteano, transcendentalista. Mas é fato que todo indivíduo tem este “sentimento de justiça”. Mas este sentimento, supostamente inato, não passa de um conceito oco, pobre e vazio, uma forma pura, sem qualquer serventia. Mas tal conceito se agiganta quando recebe da vida social o seu conteúdo. Trocando em miúdos, e a vida social de cada povo, em cada lugar e cada momento de sua história, que vai estabelecer o consenso sobre o que é justo, o que é certo, o que é conforme a razão. A própria Razão Pura, ao contrário do que brilhantemente sustentou Kant, não é uma espécie de sistema operacional do nosso hardware mental, mas uma construção social historicamente determinada.

Demos tantas voltas para, afinal, chegarmos ao ponto de partida: a educação. O homem faz a cultura e a cultura faz o homem. Desde o momento em nasce, o animal humano vai sendo moldado pela cultura para se tornar pessoa. Suas arestas selvagens vão sendo limadas. Seus impulsos animalescos vão sendo reprimidos. O processo de formação do homem é o que chamamos “educação”, ou o que os gregos antigos chamavam de “paideía”.

Quem é  minha mãe?” 

Aqui entramos no santo do santo da questão educacional: a família como base de toda educação. Antes de ser entregue à instrução pública para virar cidadão, o indivíduo começa a ser preparado no âmbito da família para virar gente. Antes da escola, durante e depois dela, o bicho homem recebe o que já foi chamado, idilicamente, de “educação de berço”. Mas, vamos falar sério, será que os pais estão sabendo educar seus filhos? Posto que a a família joga papel central na educação da pessoa e na formação do cidadão, o que devemos entender por família? Trata-se de um conceito absoluto ou relativo?

Toda celeuma em torno dos processos de Lula e as delações de Joesley contra Temer acabaram abafando uma polêmica explosiva que vinha sendo travada no Congresso Nacional: a definição legal de família. O texto proposto por um deputado evangélico reconhece família como “a entidade familiar formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”.

O texto é ruim e tautológico. Tem recebido críticas dos que defendem a união entre homossexuais como entidade familiar, como já ocorre em países civilizados e tolerantes. Mas até mesmo nos primórdios do cristianismo o conceito de família determinada pelo sangue era visto com desprezo e até hostilidade. Jesus, o Nazareno, certamente inspirado pelas práticas comunistas dos Essênios, que o precedeu em mais de 100 anos, instituiu a família universal.

Vamos recordar Matheus, 46-50: Enquanto Jesus estava falando às multidões, sua mãe e seus irmãos ficaram do lado de fora, procurando falar com ele. Alguém lhe disse: “Olha! Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e querem falar contigo”. Ele respondeu àquele que lhe falou: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” E, estendendo a mão para os discípulos, acrescentou: “Eis minha mãe e meus irmãos. Pois todo aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.

Esta passagem do Evangelho de Matheus é desconcertante. Marcos repete esta passagem sem qualquer modificação significativa. E lucas nos conta da reprimenda de Jesus ao que se candidatou a discípulo pedindo-lhe para, antes de ingressar no grupo, ir ao enterro do pai: Que os mortos enterrem seus mortos. Jesus impunha como condição para ser seu discípulo o abandono de pai, de mãe e de irmãos.

Em um livro seminal ( com perdão da má palavra) sobre a gênese, desenvolvimento e crise do cristianismo, Karl Kautski, o principal discípulo de Marx e editor póstumo de algumas de suas obras, sustenta o caráter proletário, o ânimo rebelde e o estilo de vida comunista das primeiras comunidades cristãs. Como o passar dos tempos, mas sobretudo depois da destruição de Jerusalém, o cristianismo torna-se um movimento internacionalista que vai, paulatinamente, se adaptando às novas condições do império romano. Os chefes das comunidades, ou “igrejas”, desenvolvem um revisionismo oportunista que inclui fraudar documentos e a deturpar fatos hatóricos. Sabemos hoje que há muitas “interpolações” nas epístolas de Paulo a Timóteo, por exemplo. As relações de Paulo com sua companheira Tecla virtualmente desapareceram da literatura cristã. A partir do Século II, aponta Kautski, o cristianismo se transforma do extremo oposto do que foi no início.

Este colapso dialético iniciado a partir do surgimento dos “doutores da igreja”, abafando toda vocação profética dos antigos apóstolos, levou a que a Igreja Católica instituísse a família nuclear, baseada na consanguinidade, como a Família por excelência, tendo como modelo a “sagrada família” de José, Maria e Jesus, muito embora Jesus tivesse rompido com seus parentes. E, apesar disso, durante toda idade média o modelo prevalecente, na realidade social, foi a família patriarcal de viés gentílico. A família nuclear fundada no sangue é obra da modernidade capitalista.

Fim da família? 

Içami Tiba, num de seus últimos artigos, observa que muito se tem discutido, contemporaneamente, a respeito da abrangência do conceito de família e sobre a dissolução do seu modelo tradicional, modelo cuja falência (ao que parece já decretada) implicaria, na opinião de alguns, na má formação moral das futuras gerações.

“Entretanto”, ressalta Içami, “enquanto nos perdemos em discussões improfícuas nessa seara, nos digladiando por conta de formalidades às quais alguns se apegam, não raro, em função de preconceitos infantis, fechamos os olhos para a discussão que realmente importa: o caráter da educação que temos dado às nossas crianças”.

Foi nesse sentido, a fim de recolocar em pauta a reflexão sobre o papel da família na formação das crianças que Içami Tiba, proeminente psicoterapeuta e escritor do campo da educação, passou a discutir o papel que hoje se cumpre mal, em razão da fragilidade cada vez maior das relações sociais e da nossa pressa característica.

Içami Tiba foi um médico psiquiatra, psicodramista, colunista, escritor de livros sobre educação, familiar e escolar, e palestrante brasileiro. Professor em diversos cursos no Brasil e no exterior, criou a Teoria da Integração Relacional, que facilita o entendimento e a aplicação da psicologia por pais e educadores. Faleceu em 2015, vítima de câncer.

Em seu livro Educação Familiar – presente e futuro, pontifica o mestre: “As famílias não estão sendo sustentáveis nem os filhos constroem suas sustentabilidades em tempo adequado. Os pais estão formando mais príncipes herdeiros do que sucessores empreendedores. A autoridade da força física é diferente da autoridade educativa que provém da liderança. Quando um filho erra, pouco educativos são a surra, o grito, a ofensa, o simples perdão etc. Para se ter uma educação sustentável o filho tem que aprender a não errar mais. Os pais, no lugar de descarregar frustração e raiva, poderiam dizer: “Você tem que aprender a fazer o certo” e ensinar qual seria a ação mais adequada que o filho teria que praticar para aprender. Uma vez aprendido, o filho nunca mais errará por ignorância, e fará o correto. O melhor aprendizado é quando se faz, mais do que simplesmente ouvir ou ver… Assim, os pilares da educação sustentável são: Quem ouve esquece; Quem vê imita; Quem justifica não faz; Quem faz aprende; Quem aprende produz; Quem produz inova; Quem inova sustenta e Quem sustenta é feliz!”.

Já é de percepção geral que os pais, hoje em dia, têm uma atitude exageradamente condescendente tem relação aos filhos. Abdicaram da autoridade que possuem naturalmente. Há um temor generalizado de “traumatizar” as crianças. Esta atitude, segundo muitos psicólogos, decorre de um mal disfarçado sentimento de culpa pelo afastamento, pela ausência em relação à prole.Grande parte dos pais e mães trabalha fora. O pouco tempo de que dispõe para interagir com os filhos acaba sendo desperdiçado em outras atividades.

Num artigo intitulado “Pais ocupados, filhos distantes”, Tiba aborda o problema: “Vivemos um paradoxo inesperado. Trabalhamos tanto e conseguimos avanços tecnológicos incríveis para termos melhor qualidade de vida e tempo, mas temos menos tempo para nos dedicar à família. Muitos pais ocupados sofrem na pele com seus filhos adultos, jovens, adolescentes, ou crianças o não ter compartilhado da vida deles. Várias pesquisas entre os homens de sucesso mostram a distância que existe entre o que vivem e o que gostariam de viver com os seus filhos”.

Entretanto, nota o educador, há pais que, mesmo tão ocupados nos seus negócios, seus filhos não lhes são tão distantes. “São pais de Alta Competência. São pais dedicados também à família, não só aos seus negócios. Uma dedicação que vem de sua disposição interna e disponibilidade externa por terem colocado a educação dos filhos como prioridade”, observa.

Mas o fato é que a maioria coloca os negócios como prioridade. Assim negligenciam a vida, pois o viver é mais importante do que o negócio. Os pais de Alta Performance sabem da importância dos negócios, mas não são assimilados por eles: eles os assimilam para melhorar suas vidas e a dos outros.” Quem vive para os negócios, alerta Icami Tiba, “não é dono de si mesmo, mas sim escravo deles. E quando mais precisam da vida é que estes escravos dos negócios se dão conta do quanto deixaram de viver em suas famílias. Um infarto no estrangeiro, um acidente numa estrada longínqua, ou mesmo um filho envolvido com drogas ou uma gravidez precoce faz qualquer profissional rever sua vida”.

Bons pais têm a noção da sustentabilidade de suas vidas. Os avanços tecnológicos da sociedade capitalista trouxeram também o consumismo, o estresse, a falta de tempo… “Falta de tempo? Acredito que nem tanto. Temos tudo para poupar tempo. Revivemos amizades a um simples toque de teclado adentra do no mundo virtual. Encontramos tantos amigos num dia só que no passado levaríamos séculos para encontrá-los pessoalmente”, observa o educador.

Segundo Tiba, os pais que dizem não ter tempo para os filhos estão vivendo a contradição de querer encontrar o tempo passado como seus pais e ancestrais faziam (sentarem juntos, jogarem papo fora, brincarem com ou lerem para os seus filhos, etc). Cada pai pode falar com seus filhos no momento que quiser via celular, Orkut, Skype, MSN, torpedos, Twitter, etc. Estes todos são instrumentos são do tempo presente para contatar as pessoas, e não o contrário.

“Pais de Alta Performance, ensina o educador, “acompanham não só passo a passo seus negócios como também o caminhar e o desenvolver dos filhos na escola e dentro de casa. Basta um clicar e ele tem ao seu alcance as notas que não o surpreenderão no final do ano. Uma exigência e os filhos enviam mensagens pelo twitter resumindo a essência de cada aula que tiveram no dia, usando as suas próprias palavras. Para construir estas mensagens, o filho terá de transformar as informações recebidas do professor em conhecimento. Serve de resumo para as provas mensais”.

Eis o que recomenda o mestre: “Seu filho está preocupado ou sofrendo? Envie-lhe um torpedo perguntando como está e exija resposta mais longa do que um ‘tudo bem’, para agendar um encontro, quem sabe numa lanchonete, para almoçarem juntos e compartilharem este momento que pode ser o ponto de virada entre o bom e o mal resultado… Afinal, são os filhos que vão nos sustentar na velhice, nas doenças da longevidade, além de perpetuar o nosso DNA pelo mundo afora”.

 



“Se o jusfilósofo italiano Giorgio Del Vécchio, da escola neokantiana, estiver correto – e eu sempre acho que está – a Justiça não é uma categoria jurídica, e muito menos política. É uma virtude moral. 

Uma divindade, como dizia Calamandrei, outro jusfilósofo, que só se revela aos que nela creem”


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