Entre o desespero e a esperança nas ruas
Redação DM
Publicado em 17 de dezembro de 2016 às 14:09 | Atualizado há 7 mesesQuem caminha pelas ruas de Goiânia pensa que a cidade tornou-se um imenso depósito de humanos. Desempregados, flanelinhas, limpadores de para-brisa, moradores de rua, crianças, doentes mentais, pedintes, trabalhadores informais, trapezistas, malabaristas, enfim, artistas de ponta de esquina. Todos convergem para as ruas no fim de ano. Entre a avenida Goiás e Anhanguera é possível encontrar vários. Um a um, eles são confinados: andam trôpegos, cambaleantes, em um ritmo diferente dos integrados pelo sistema. A subcidadania se revela na falta de documentos, projetos, sonhos.
Não são apenas no Centro que eles se encontram. No Setor Sul é grande o aglomerado, principalmente dos artistas de rua, que lutam para dar beleza em um universo de horror e decadência. No Universitário, os usuários de crack formam seus quiosques nas calçadas. Já na avenida Castelo Branco, em Campinas, uma estátua magra – em bronze-tinta com uma touca de Papai Noel – chama atenção de quem passa pelo local. Ela se mexe e quer uns trocados.
Além da violência econômica contra os habitantes das ruas, ocorre a ampliação significativa da violência contra os residentes no geral. É uma soma que dá menos para todos: quanto mais aguda é a violência de quem vive e mora na rua, mais alarmante é o sentimento predador dos perímetros em que habitamos. Por isso todos perdem.
No último levantamento oficial realizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), a partir do Núcleo de Estudos sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), existiam 351 moradores nas ruas. Mas o número já deve ser maior. No final do ano, o aglomerado que enche as ruas não é de morador. É, na verdade, de vendedores, desempregados que se dirigem para os centros de riqueza, pedintes que aproveitam melhor a data de fim de ano e até mesmo moradores de outras cidades, que buscam a Capital em busca de oportunidades de empregos. O resultado é uma cidade inchada e fantasmagórica.
“O que mais nos deixa sem entender é a incapacidade do poder público agir. Ele simplesmente deixa acontecer. O Brasil é hoje uma nação da mendicância. Goiânia tornou-se um problema social que só nos damos conta nos sinaleiros”, diz o assistente social Luís Inácio, que atua na ONG A Paz que eu Quero.
Quem incha a metrópole é gente que deseja [com razão e direito] sobreviver – e que denuncia a ausência de uma democracia exatamente nas esquinas das cidades. Eles seguem em busca do imediato. Muitos chegam atrasados na fome que já sentiram-sentem-sentirão. Outros precisam dar um jeito no despejo que já deveria ter acontecido.
O vendedor de sinal ‘Homem Aranha’, que pediu para não se identificar devido ao medo de ser estigmatizado, afirma para a reportagem do DM que está com a carteira de trabalho “parada” e que vende coisas nos sinais com a missão de cuidar do filho. “Faço o que posso. A crise está feia, meu irmão”, diz.
Ele vende balinhas por R$ 2 com uma informação social: “Estou desempregado e essa foi a forma que encontrei para poder sustentar minha família! Se não puder comprar, colabore com meu trabalho, por favor! (Procuro Emprego de brigadista)”.
Junto da assinatura, nosso “Homem Aranha” fornece o telefone, que é…61. Portanto, um morador de cidades do Entorno ou do Distrito Federal em busca exatamente de cidades onde possam caçar e sobreviver.
Os problemas dos vendedores e dos moradores são socialmente diferentes, mas semelhantes aos olhos da população, que até ajuda os pedintes, mas que reconhece certo mal-estar com a proliferação do infortúnio.
A Prefeitura de Goiânia não tem uma política pública efetiva para enfrentar o problema. E o problema tópico e crônico – de pessoas nas ruas sem um interesse específico de trânsito rápido – é das gestões das cidades. Há um ano, a administração resolveu ser mais atuante com o fato, com a criação do Centro Pop, que tentou mapear os moradores de ruae dar rumo a alguns deles.
A unidade consegue encaminhar uma ou outra demanda para órgãos públicos, mas sem conseguir interromper o problema. Também é absurda a legislação sobre competências: a gestão do município não consegue dar conta da falta de documentos, de relações primárias rompidas, da ausência de solidariedade familiar, do vácuo da assistência social – que é uma obrigação da Seguridade Social, órgão do Governo Federal, mas que não chega nas ruas para estropiados e miseráveis.
Existe até mesmo um Comitê Gestor Municipal Intersetorial da Política Nacional para a População em Situação de Rua. Mas é ineficiente no sentido do verbo ‘fazer’. O que funciona mesmo é ação, como a do Tio Cleobaldo, que vai para as ruas em busca de solução para cada morador. Ele conta ao DMOnline que “tem que ter disciplina, vontade, interesse” em ajudar. O aposentado é um obstinado em socorrer pessoas nesta condição. “O que leva a pessoa para a rua é fome. Tem criança que saiu para pegar cesta de Natal. Foi e foi ficando na rua, ficando, tá aí há dez anos. Crianças que cresceram nas ruas”, diz.
MUDAR DE VIDA
No momento em que falava com a reportagem, ele se preparava para ‘pegar’ outro morador de rua que estava na avenida Goiás. “Esse disse que iria ficar me esperando. Que não aguentava mais, que deseja mudar de vida. Vou internar ele”, diz.
Cleobaldo recebe doações (contato: 99136 4435) e procura atender um a um. Sua vida é essa. Não para. A mesma luta inglória todos os dias. Divide seu tempo entre a família e os moradores. “Nesta época do Natal chega um monte de gente querendo emprego aqui. Bato o olho e sei se está na rua por causa disso. É desesperador. A crise atrapalhou demais”, diz o humanitário.
[box title=”Grupo heterogêneo sobrevive nas calçadas”]
A visão de José Eduardo Silva, assessor de direitos humanos da Prefeitura de Goiânia, é de que exista um conjunto mais amplo do que os moradores de rua. Para ele, deve-se considerar população em situação de rua um grupo heterogêneo, cuja característica é a pobreza extrema.
Neste grupo tem gente de todo tipo, como aqueles com vínculos familiares interrompidos ou frágeis, além dos que não têm moradia convencional regular. E nestes se incluem, por fim, todos aqueles que se dirigem para os logradouros públicos em busca de sustento. É o caso de ‘Badeco’, que perambula pelo setor Sul e que mora numa das vielas do projeto Cura “quando alguém deixa”. “Vou vivendo, fico por aqui, não mexo com ninguém”, diz. Nome do Badeco? “Não tenho não, senhor”. Parentes? “Não, senhor”. Amigos? “O dono da padaria ali. Meu amigo, me dá pão”.
Aliado ao problema econômico dos que habitam as ruas, o problema em específico dos moradores que de fato perambulam pelas ruas e não voltam para casa é alarmante, pois a fome é negada na mesma medida que a vida. O risco de morte é um dos mais altos para a minoria.
O estudo divulgado neste ano pelo Necrivi e Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) revela um ambiente extremamente violento e degradado. A capital teve o assassinato de 61 moradores em três anos, sem contar os dados mais recentes, que mantém uma regularidade de mortes neste grupo vulnerável.
A violência chamou a atenção da ONG A Paz que eu quero, que analisa o comportamento dos moradores. “Realizamos entrevistas com alguns moradores para tentar entender como agem, o que pensam. A ideia é fechar um relatório com sugestões para o poder público. Uma das coisas que notamos é que a reconstrução do aspecto familiar é o mais delicado e complexo. E sem ele é difícil obter sucesso no quesito ‘tirar’ a pessoa da rua”, diz Luís Inácio.
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Poder público tenta articular ação
Integrantes da Universidade Federal de Goiás (UFG) e do Ministério Público, dentre outros agentes públicos e organizações sociais, tentam colocar em prática um ambicioso projeto de atenção ao morador de rua.
Uma das propostas, o Projeto Singular, tem como meta ir além das propostas manjadas de oferecer uma oportunidade ao morador. Para integrantes do MP, é preciso, sim, garantir uma oportunidade e ajudá-lo a se restabelecer.
Uma das propostas dos promotores de Justiça diz respeito ao reordenamento das políticas públicas. Para eles, é necessário oferecer equipamentos e serviços públicos que atendam aos moradores.
O debate sobre os povos de rua tem sido realizado, mas as agências públicas de atenção não se movem para cuidar e atender os moradores identificados pela pesquisa da UFG realizada no âmbito da Faculdade de Ciências Sociais. Pouco foi feito efetivamente.
“O que mais nos deixa sem entender é a incapacidade do poder público agir. Ele simplesmente deixa acontecer. O Brasil é hoje uma nação da mendicância. Goiânia tornou-se um problema social que só nos damos conta nos sinaleiros”, diz o assistente social Luís Inácio, que atua na ONG A Paz que eu Quero.
Da parte do MP o que se espera é a ampliação das discussões, estabelecimento de metas e apresentação de termos de ajuste de conduta e ações judiciais para gestores insensíveis.
A UFG pretende criar um observatório social para acompanhar os moradores. “Formaremos uma rede aberta de solidariedade, que deverá ser construída de forma gradativa e com a participação de diversos atores”, diz Marilúcia do Lago, da Faculdade de Educação. Ela aposta na participação das universidades, fundações e movimentos populares, empresários, instituições filantrópicas, sociedade civil, dentre outras.
O problema, todavia, permanece latente: faltam recursos. Parte do problema pode ser resolvido com ações e uso de estratégias sociais, educacionais e psicológicas inteligentes. Mas sem a articulação com os gestores de orçamento a questão se problematiza, mas sem apontar solução. Afinal, como se vê nas ruas de Goiânia, que em dezembro transbordam pedintes, doentes, deficientes, povos, enfim, que vivenciam a realidade das ruas. O problema é urgente.
O sociólogo George Simmel, ao pensar sobre a vida mental nas cidades, criou o termo olhar blasé. Ao atravessarmos os espaços urbanos, focamos nosso olhar no horizonte de forma a não encarar a miséria das metrópoles. Seguimos em passo reto, decidido e firme. O problema é que em Goiânia, as elites, as forças policiais, os servidores públicos, os integrados no sistema, estão tropeçando na miséria. Não dá mais para fingir que o problema não existe.