Cotidiano

Fadas fardadas

Diário da Manhã

Publicado em 19 de fevereiro de 2016 às 01:47 | Atualizado há 4 meses

Mulheres ingressaram na corporação há 30 anos e já ocupam cargos relevantes nos escalões superiores, inclusive de comando

A Polícia Militar do Estado de Goiás comemora 30 anos da presença feminina na corporação. Uma solenidade especial hoje na Academia da Polícia Militar marcará a data com um desfile e apresentação do contingente feminino da instituição. O comandante-geral, coronel Sílvio Benedito Alves, coordenará o evento com a presença de autoridades do governo.

Considerado um dos marcos da mudança de mentalidade na composição da força policial, o ingresso de mulheres em 1986 foi uma das mais comemoradas vitórias dos movimentos que lutavam pelo avanço dos direitos das mulheres na sociedade. Em meados da década de 1980 o Brasil vivia os primeiros dias da liberdade, após duas décadas de escuridão provocadas pela ditadura militar e a permissão para que mulheres ingressassem em uma corporação militar parecia inconcebível para a maioria dos líderes políticos e comandantes da tropa.

O primeiro processo seletivo para inclusão de policiais femininas teve 1.116 inscritas. Muitas candidatas simplesmente não acreditavam que haveria tamanha permissividade para que mulheres vestissem farda e pudessem conviver normalmente com os homens em quartéis, batalhões ou ocupar lugar de primazia em operações militares. Das primeiras inscritas um contingente de 103 foram aprovadas para o curso de formação de soldados e apenas 99 concluíram o curso e puderam envergar uma farda.

As exigências para o ingresso na carreira militar hoje soam como hilárias, pela primariedade das considerações que os dirigentes de então consideravam importantes. As candidatas deveriam ter entre 18 e 26 anos, primeiro grau completo (ensino fundamental), altura mínima de 1,60m, ser solteira, separada legalmente ou viúva. Isso implicava em que os comandantes não queriam mulheres casadas ou que pudessem ter filhos. Se pudesse engravidar mesmo não sendo casadas isso não era concebível pelos comandantes de então, sob qual fundamento ainda é um mistério indecifrável.

A seleção era feita mediante aplicação de prova intelectual, avaliação médica, teste de aptidão física e avaliação psicológica. Atualmente, as mulheres formam um efetivo composto por 1.031 policiais femininas, à frente de companhias ou batalhões; na condução de viaturas; ao lado de cães ou cavalos; exercendo cada vez mais funções antes ocupadas apenas por homens.

Vigilância

A tenente-coronel Vera Lúcia Vieira da Cunha Montagnini faz parte da história do processo de ingresso de mulheres na Polícia Militar. Ela ingressou na PM como soldado na primeira turma em 1986 e sofreu com as outras 103 colegas para mudar os paradigmas que existiam e que tornavam as mulheres quase que um corpo estranho no ambiente militar. É preciso lembrar que o Brasil ainda vivia sob a égide de uma Constituição Federal legada pelos militares em 1969, considerada ditatorial e sem a liberalidade democrática advinda com a Carta promulgada em outubro de 1988. Oficiais do exército ainda tinham ingerência sobre as polícias militares e definiam políticas a serem seguidas e até o nível dos cursos que lhes seriam ministrados.

“Enquanto estávamos no curso não poderíamos casar e se alguma pretendesse constituir família deveria pedir baixa da corporação”, lembra ela. Para namorar havia uma vigilância imperativa e os namorados precisavam guardar o decoro e uma recatada distância. Contatos mais íntimos como namorados fazem hoje nem pensar. Logo após fazer o curso de soldado e já acostumada ao ambiente de policiais militares ela foi aprovada com louvor no concurso para ingressar no curso de preparação de oficiais. Classificada em segundo lugar ela pode escolher onde faria a academia e sua escolha a levou para Curitiba. Um major a levou para a capital paranaense e a entregou ao comandante da unidade como se lhe confiasse um tesouro. “Havia uma preocupação e proteção para conosco”, lembra ela.

Vera hoje é sub-comandante de Saúde da PM e já comandou unidades difíceis e apenas com homens sob sua batuta. Como major foi comandante do 7º Batalhão da Polícia Militar, localizado na Região Sudoeste de Goiânia e que contava com 320 integrantes. Ela precisava imprimir uma capacidade de comando para não deixar a tropa vacilar no cumprimento de suas missões, ao tempo que precisava ser esposa e mãe também.

Além de eficiente comandante a tenente-coronel Vera é uma observadora atenta das mudanças provocadas pelo ingresso das mulheres na Polícia Militar. Hoje ela considera como diferenciais entre mulheres e homens na vida militar que homens cumprem suas missões sem questionar, principalmente os efeitos da ação, ao passo que as mulheres questionam mais e são mais perspicazes. “A sabedoria para mulheres na vida militar consiste em ser guerreira mantendo a ternura”, filosofa.

Orgulho

Núria Guedes da Paixão e Castilho hoje é tenente-coronel e pertence à primeira turma que entrou na Academia da Polícia Militar no Curso de Formação de Oficiais como portadora de diploma de curso superior. Ela era bacharel em direito. Ela lembra que pensava em seguir uma carreira jurídica quando estava na faculdade, como promotora de Justiça ou juíza. Mas, vendo o pai, coronel Paixão, e sua dedicação ao trabalho policial ela resolveu arriscar. Se inscreveu no concurso e somente quando conferiu que havia sido aprovada contou ao pai que pretendia seguir a carreira militar.

“Meu pai desaprovou minha ideia, mas a opção era minha e hoje vejo que foi acertada”, recorda. Havia uma proteção para com as policiais femininas, como é natural do homem tentar proteger as mulheres, apesar desse processo ter sido modificado ao longo dessas três décadas.

Núria precisou enfrentar desafios de peso também e já como tenente foi designada para servir no Batalhão de Trânsito, com muitos homens sob seu mando. Algumas vezes teve de ouvir de machistas empedernidos, principalmente praças (soldados, cabos e sargentos) que tinham grande resistência em receber ordem de uma mulher. “Por duas vezes precisei dar voz de prisão a um outro militar e enquadrá-lo na disciplina para que me obedecesse”, frisa. Núria, que já era filha de um oficial da PM se casou com um colega de farda, oficial também. Curiosamente ela esteve algumas vezes à frente dele na escala de promoções para postos superiores, como quando ela foi alçada ao posto de tenente-coronel e ele continuou major. Caso se encontrassem em um ambiente militar não tinha folga, ele, o marido, lhe prestava continência e a tratava por “senhora coronel”. E que não bancasse o folgado.

“Conseguimos construir uma igualdade ao longo desse tempo e nós mulheres mostramos que somos capazes”, frisa. Como todos os oficiais superiores, acima do posto de major, sendo homens e mulheres, Núria revela o sonho de ser comandante-geral da corporação que abraçou como um sacerdócio. “Tenho orgulho de ser oficial da polícia militar. Sou mulher e combatente. Sou militar”, finaliza.

O ingresso de mulheres em 1986 foi uma das mais comemoradas vitórias dos movimentos que lutavam pelo avanço dos direitos das mulheres na sociedade. (Divulgação)

Atualmente, as mulheres formam um efetivo composto por 1.031 policiais femininas, à frente de companhias ou batalhões; na condução de viaturas; ao lado de cães ou cavalos; exercendo cada vez mais funções antes ocupadas apenas por homens. (Ruber Couto)

“A sabedoria para mulheres na vida militar consiste em ser guerreira mantendo a ternura”, filosofa Vera Lúcia Vieira da Cunha Montagnini, sub-comandante de Saúde da PM. (Ruber Couto)

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