Goiás intolerante: como menosprezamos o candomblé
Diário da Manhã
Publicado em 27 de julho de 2018 às 00:26 | Atualizado há 4 meses
Goiás lidera o ranking de 1.º lugar em intolerância religiosa, segundo pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos, MDH, com sede em Brasília. A intolerância contra religiões de raízes africanas segue a tradição histórica contra os povos negros. A demonização da religião é um dos vieses do preconceito observado.
Quem nasce no orixá, é presenteado com um “delogum”, que é um colar de contas de dezesseis fios que representa as cores e os elementos do orixá.
Cada orixá detém um tipo de elemento. Por exemplo: Oyá detém o vento. Exú representa o fogo. Tudo está relacionado à natureza. A cultura relacionada às religiões afro-brasileiras foram demonizadas, numa demonstração clara da associação racista do negro com os espíritos “maus”. Não conhecer a cultura orixá que é datada de pelo menos 8 mil anos, onde há elementos que comprovam que o culto aos orixás já existia no continente africano, e tecer comentários sobre o assunto sem conhecê-lo é no mínimo temerário.
Como é de conhecimento de todos, a África é o berço da civilização e o culto aos orixás existe desde os primórdios da humanidade.
A cultura e religiosidade do Candomblé é monoteísta: O deus é o Olorum, que fez os orixás, que são os tutores dos homens na Terra.
As afirmações são de Mariléia Ferreira da Silva Lasprilla, graduada em administração, com MBA em marketing e vendas. Seu nome sacerdotal é Iyalorisa Marileia Lasprilla de Oxumarê, mãe de santo de religiosidade Candomblé, de cultura Iorubá, nação Ketu. Sua casa é Ilê Nila Bobó Orixá Axé Danferó. Tem mais de 60 filhos iniciados. Também dirige o Movimento Agô, que é um movimento social que foi criado visando a desconstrução do preconceito em relação aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana. O combate à intolerância religiosa, ao preconceito religioso se dá através da divulgação dos preceitos religiosos, para que toda a comunidade tenha acesso às informações culturais do Candomblé, resguardando o sagrado.
É forte o racismo contra os praticantes do Candomblé, uma vez que cultuam deuses negros. Entretanto, os povos europeus não dispensam o petróleo nem os diamantes abundantes no continente africano. Contra essas riquezas africanas não há preconceito, mas há guerras por elas e exploração.
Quando criança, sendo seus avós religiosos do Candomblé, ouvia sua vó dizer: “você vai ser mãe de muitos filhos”. Iyalorisa achava que iria ter uns 20 filhos, mas posteriormente entendeu que se referia ao fato de se tornar mãe de santo.
SINCRETISMO RELIGIOSO
Sobre o sincretismos religioso, Marileia explica que a cultura é de resistência, uma vez que sobreviveu às perseguições impostas pelos senhores de escravos que não admitiam que os escravos negros proferissem a sua religião de origem. Havia um ritual antes do embarque nos navios negreiros que se constituía em uma passagem pela “árvore do esquecimento”. Deste modo, os escravizados eram obrigados a darem várias voltas ao redor de uma árvore como um ritual de esquecimento das famílias que estavam sendo deixadas para trás, seus nomes, suas crenças e a religiosidade. Assim os escravos embarcavam como “nada”, senão como uma mercadoria.
Quando chegavam ao Brasil, nas senzalas, os senhores os proibiam de proferir sua religião. Eles eram obrigados a serem evangelizados no catolicismo. Mas como já tinham a crença de raiz–e essa não se arranca da alma–os escravos associaram cada orixá a um santo católico. Então quando os senhores vinham fiscalizar se os negros estavam cultuando os deuses africanos, eles falavam que estavam cultuando um santo católico.
Lasprilla ensina que o sincretismo religioso está desvinculado na sua crença, mas não há como negar as informações. Também explica que o sincretismo religioso está desvinculado na sua crença, o Candomblé, mas não há como negar as informações. Obviamente esse sincretismo aconteceu porque eles foram encontrando afinidades entre o orixá e o santo católico. Esta foi a primeira estratégia de resistência das religiões africanas: associar cada santo católico a um orixá para poder dar continuidade à sua crença. Por exemplo: São João é Xangô e São Pedro é Ayra. Ewá é Santa Luzia. Nossa Senhora Aparecida é Oxum. Nossa Senhora é uma santa católica negra e é considerada mãe, e a Oxum é um orixá negro e é considerado mãe.
CANDOMBLÉ É BRASILEIRO
Asprilla salienta que o Candomblé existe apenas no Brasil, apesar de ter raízes africanas. A religiosidade Candomblé é brasileira e surgiu devido ao encontro de crenças de diferentes etnias de escravos que vieram para o Brasil. Cada cidade africana cultua um orixá diferente. Quando vieram para o Brasil, os escravos eram trazidos de várias regiões africanas, vez que como eram tidos como mercadoria, apenas os melhores exemplares de cada espécime eram comercializados. Vieram muitos guerreiros, príncipes e membros de famílias reais africanas, numa seleção valiosa. Assim, várias etnias eram colocadas juntas nos porões dos navios. Aqui chegando, a estratégia era misturar diferentes etnias, de diferentes grupos e dialetos para causar confusão e evitar rebelião. Tribos inimigas eram estrategicamente colocadas juntas, para que não se fortalecessem e não se organizassem contra os seus senhores. Esta foi uma das estratégias de enfraquecimento da cultura africana. Entretanto, os escravos negros se juntaram na fé.
É por isso que os povos e comunidades tradicionais de matriz africana são chamados de “povos de resistência”, pois encontraram várias formas para poder dar seguimento à cultura, crença e religiosidade de seu povo.
Dentro de uma casa de candomblé são cultuados em média 16 orixás, enquanto que na África cada cidade cultua um orixá. O “sagrado” do Candomblé está fundamentado na cultura, através da oralidade, de pai para filho. A cultura é matriarcal, de modo que a origem dos orixás veio da mulher, por ela ser genitora e deter o status de dirigente. Quando os escravos vieram da África, ele vieram sem os filhos. Essas mães que são chamadas de Iyalorixás porque assumiram no Brasil a maternidade dos filhos e pais separados, em solidariedade. Essa é a origem da nomenclatura: “Mãe de Santo”.
O Candomblé é uma cultura que agrega e acolhe. Esse foi o segredo da sobrevivência e resistência.
A partir do momento que uma pessoa se inicia dentro de uma comunidade do Candomblé, ele é chamado de filho. E dentro da comunidade, cada pessoa tem o seu papel. Uma vez cumprido esse papel, não importa o que a pessoa faça do portão para fora. O portão para fora é a vida pessoal de cada um. Isso significa dizer que o Candomblé é inclusivo. “Do portão para dentro de uma casa de Axé você executa sua função”, afirma. “É uma cultura hierárquica e rígida, onde cada comunidade sobrevive através de regras. Há as regras da cultura, da religiosidade e da casa. Quem pratica o Candomblé tem que as adequar a estas regras,” afirma Asprilla.
Há pessoas que já nascem dentro da cultura, o que não significa que outras pessoas não possam ter acesso à religião. O processo de iniciação leva 21 dias de dedicação. Durante esse período o iniciado terá acesso ao conhecimento sobre a cultura, crença, religião, fé, culinária, os atabaques, cantigas e rezas.
É uma cultura hierárquica e rígida, onde cada comunidade sobrevive através de regras. Há as regras da cultura, da religiosidade e da casa. Quem pratica o Candomblé tem que as adequar a estas regras”
Manifestação tem força na musicalidade
Mariléia Ferreira da Silva Lasprilla afirma que o Candomblé é musicalidade, e ele não decepciona, pois segue a tendência dos tambores que se apresentam dentro de outras culturas milenares, como as asiáticas. Candomblé não é apenas uma religião. É uma tradição de povos e comunidades de matrizes africanas, o que significa dizer que é um povo que tem uma linguagem própria (iorubá). Festas se constituem em rituais de alegria. Toda a cultura, língua, culinária vêm da África. A cultura e o sagrado estão bem delimitados no Candomblé.
Outra estratégia de ação é a participação em políticas públicas. Por isso Marileia Ferreira aceitou assumir uma cadeira como Conselheira Titular do Conselho Estadual da Mulher para fortalecer o matriarcado, fortalecer a cultura e trabalhar em prol da cultura do Candomblé junto ao Estado, enquanto organização de poder.
Em pesquisa recente realizada pelo ministério dos Direitos Humanos sobre intolerância religiosa contra povos e comunidades tradicionais de raízes africanas revelou que Goiás ocupa o 1.º lugar, o que demonstra uma tendência à ocupar lugar de destaque quando o assunto é violência.
Marileia termina conclamando a população do Estado de Goiás a fazer uma reflexão a fim de melhorar o trato relativo às diferentes religiões proferidas no Estado, já que acredita que viemos a este mundo para torná-lo cada vez melhor.