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Lei Áurea: as cicatrizes abertas da escravidão no Brasil

Embora a abolição da escravatura tenha acontecido em 1888, os resquícios do preconceito e da segregação são sentidos em todos os aspectos sociais no país

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A ecravidão foi uma das maiores violações dos direitos humanos na história da humanidade. No Brasil, o sistema escravagista durou mais de três séculos e deixou um legado de desigualdade e injustiça que ainda é sentido nos dias atuais.

Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida em 1888, as suas consequências ainda afetam profundamente a sociedade brasileira. A maioria dos escravos no Brasil eram africanos, trazidos à força para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar, café, algodão, entre outros. Essas pessoas foram brutalmente arrancadas de suas casas, línguas, culturas e famílias, e submetidas a condições de trabalho desumanas e violência sistemática.


		Lei Áurea: as cicatrizes abertas da escravidão no Brasil
Fernando Keller

Negros escravizados trabalhando em uma casa de família branca no Brasil. (Gravura de Jean-Baptiste Debret, 1835. Domínio público, Acervo ABL).

Após a abolição, essas pessoas foram deixadas sem recursos ou apoio do governo para reconstruir suas vidas. Muitos foram forçados a continuar trabalhando nas mesmas condições precárias, agora como trabalhadores sem direitos trabalhistas ou salários justos.

Essa história de opressão se reflete nas desigualdades raciais que persistem no país hoje. A população negra, descendente dos escravos, ainda enfrenta discriminação, exclusão social e econômica, além de ser vítima de violência policial e racial.

A doutora em Ciências Sociais, Aldenir Dida Dias, afirma que só há discussões de consequências raciais no Brasil porque a população branca não se entende enquanto raça.

"Como não houve reflexão sobre a escravidão no Brasil, do mesmo jeito com que nunca se refletiu sobre a própria Ditadura Militar, as relações sociais entre as pessoas e instituições sofrem o efeito de termos tido uma escravidão. Então as populações negra e indígena ainda são tidas como inferiores. Existem alguns estigmas da escravidão, como o quartinho de empregada doméstica, que é a senzala moderna, como dizem algumas autoras" Aldenir Dida Dias

Violência e desigualdade social

Ela ressalta ainda a questão da violência contra a população negra, uma das consequências de séculos de escravidão e que hoje, segundo a doutora, é naturalizada. A imagem dos negros na mídia brasileira é frequentemente estereotipada e marginalizada, perpetuando a visão de que eles são inferiores ou criminosos.

"A violência contra os jovens negros, os jovens periféricos, a própria violência contra a mulher ainda são efeito dessa escravidão não tratada. A própria Polícia Militar foi criada durante este período, por isso falamos que o racismo está nas estruturas da sociedade brasileira", diz.


		Lei Áurea: as cicatrizes abertas da escravidão no Brasil
Fernando Keller

Fernando Frazão/Agência Brasil

A desigualdade de renda no Brasil é um dos maiores do mundo e reflete a segregação racial e econômica. Os afrodescendentes ainda têm menos acesso à educação, emprego, saúde e moradia adequada do que a população branca. Ainda há uma grande diferença salarial entre brancos e negros, com os últimos recebendo em média 40% a menos do que os primeiros.

Saúde

A saúde da população negra escravizada no Brasil durante o período colonial e imperial foi profundamente impactada pelas condições desumanas da escravidão. Os escravizados eram submetidos a longas jornadas de trabalho extenuante em condições insalubres, recebendo alimentação precária e sofrendo maus-tratos físicos e psicológicos.

Além disso, a negação de cuidados médicos adequados era uma realidade para a população negra escravizada. E isso tem impactos até hoje.

Aldenir explica o fato de mulheres negras serem entendidas como "mais fortes", e que, por este motivo, elas ficam no final da fila do atendimento de saúde.

"Isso com a ideia que elas podem esperar, que a dor dela pode esperar. Também com a ideia de que "ela aguentou a escravidão, aguenta mais". E o povo negro, no geral, morre de doenças que poderiam ser resolvidas, mas só não são porque ele tem menos acesso à saúde, e é menos investigado quando vai ao médico", explica.

"Outro aspecto é que a população negra vive em sua maioria nas periferias e, nesses lugares, o acesso à saúde é quase inexistente. Então há mais chances de morrer e permanecer com doenças crônicas", destaca.

O papel do Estado brasileiro na abolição da escravidão foi complexo e evoluiu ao longo do tempo. Inicialmente, o Estado brasileiro desempenhou um papel fundamental na institucionalização e manutenção do sistema escravocrata. A escravidão foi legalizada no Brasil desde o período colonial, com a chegada dos primeiros escravos africanos no século XVI.

Em 1888, a Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel, abolindo formalmente a escravidão no Brasil. No entanto, a abolição foi uma medida tardia em comparação com outros países do continente americano, e não foi acompanhada por políticas de inclusão social e econômica para os ex-escravizados. Aldenir afirma se tratar, portanto, de uma abolição inconcluída.

"A abolição teve que acontecer porque precisava de mercado, de dar uma vasão para uma recém produção industrial, além de trazer imigrantes italianos para o branqueamento da população brasileira, com a ideia de que em alguns anos o Brasil seria branco, porque o povo negro morreria ou das péssimas condições sociais ou do próprio cruzamento interracial", afirma Aldenir.

Políticas públicas

A falta de políticas públicas adequadas e efetivas afeta de forma significativa a população negra e pobre no Brasil, ampliando as desigualdades sociais e perpetuando a exclusão e a discriminação. Neste contexto, estão inseridas a desigualdade socioeconômica, a discriminação e o racismo estrutural, violência, acesso aos serviços de saúde e educação.

"As políticas públicas da assistência, saúde, educação ainda estão contaminadas com aquele jeito de ajudar o pobre. Não é aquela política pública que você entende como de direito. O nosso povo não acha que tem direito, porque é algo como se fosse doado e produzido para a pobreza, então isso é um efeito de como o estado brasileiro encarou a escravidão e o fim dela", finaliza.

Cultura

Com a forte presença de africanos escravizados no Brasil e, consequentemente, a de seus descendentes, a cultura deste povo se enraizou nas cinco regiões do país.

"A cultura negra e que é ressignificada, juntando os outros povos que circularam pelo país, formaram o que é o Brasil. As influências estão na língua, culinária, religiosidade, música, dança, instrumentos musicais, nas formas de vida, principalmente no interior dos estados. A presença do povo africano é gritante", diz Aldenir.

As sequelas da escravidão no Brasil são difíceis de serem superadas, mas é importante reconhecer a existência delas e trabalhar para mudar essa realidade. É necessário investir em políticas públicas que promovam a igualdade racial e o acesso à educação, emprego e serviços básicos para a população negra. Também é importante que a sociedade brasileira enfrente e combata o racismo institucional e individual para que possamos construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Superar as sequelas da escravidão requer um esforço coletivo e contínuo. É necessário promover a igualdade de oportunidades, investir em políticas públicas que enfrentem as desigualdades sociais e raciais, combater o racismo em todas as suas formas e garantir o reconhecimento e a valorização da história e da cultura afro-brasileira.

Além disso, é importante que a sociedade brasileira se engaje em diálogos abertos e honestos sobre o legado da escravidão, reconhecendo as injustiças cometidas no passado e trabalhando para construir uma sociedade mais justa, inclusiva e igualitária. Somente através de uma ampla conscientização, educação e ação coletiva podemos enfrentar efetivamente as sequelas da escravidão e construir um futuro mais justo para todos os brasileiros.

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