Cotidiano

Livro retrata a saga centenária de uma família negra

Redação DM

Publicado em 30 de novembro de 2016 às 00:26 | Atualizado há 7 meses

Quem tem mais de trinta anos, certamente leu o livro Raízes (Roots: The Saga of  na Americam Family), de Alex Haley, ou assistiu o filme e a minissérie de mesmo nome que circulou nos cinemas, na tevê aberta e em fita de vídeo ou DVD. Raízes conta a história de várias gerações de família negra, a partir de um personagem, o africano Kunta Kinte, feito escravo e levado para os Estados Unidos, até os dias atuais. O trabalho de Haley tornou visível o que era invisível, recolocando na história a importância dos afrodescendentes na construção dos EUA como nação.

O professor Luiz Cláudio de Oliveira, carioca da gema, Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas (UERJ) e Doutor em Memória Social (PPGMS/Unirio), também percorreu trilha semelhante. Ele escreveu aquela que é a primeira história de uma família negra no Brasil. Seu livro Famílias Negras Centenárias: memórias e narrativas é fruto de sua tese de doutorado. Sua pesquisa atravessa três séculos para narrar a história de sua família, os Bernardo-Gloria-Faustino, que se constituiu no Rio de Janeiro, a partir das cidades de Rio Claro, Seropédica e depois ganhou o mundo, com raízes hoje em São Paulo e até noutros países.

A leitura do livro, editado pela Mar de Ideias, leva ao contato com a história de uma brava gente que atravessou séculos de violência, preconceito, discriminação mas que venceu as dificuldades. Luiz Claudio identifica na história da família fatos que também são comuns em comunidades quilombolas: o casamento entre membros da própria família. Sua pesquisa mostra que estas uniões se acentuam a partir da abolição (1888): “Fica claro que estes enlaces geravam a possibilidade de uma preservação da violência psicológica do racismo”, aponta.

Assim como na obra de Haley, as narrativas do livro de Luiz Claudio de Oliveira sobre os parentes dos três troncos que constituem a família extensa dos Bernardo-Glória-Faustino  remetem à reflexão do quanto famílias negras brasileiras são mais que coadjuvantes na construção da identidade nacional. A leitura nos conduz a reconhecer o protagonismo desses sujeitos sociais. O livro de Luiz Claudio é marco na literatura deste setor, porque há no Brasil vácuo em estudos sobre famílias negras, principalmente no que diz respeito à antropologia social.

É uma leitura importante, que se coloca no rol de outros antropólogos como o brasileiro Luiz Fernando Dias Duarte e o sociólogo francês Pierre Boudieu. Toda renda obtida com a venda do livro é doada à Associação da Família Bernardo-Gloria-Faustino, informa o autor. A obra pode ser facilmente adquirida pela internet a partir de R$ 31,00.

Encerrando novembro, o Mês da Consciência Negra, o Diário da Manhã traz esta entrevista exclusiva com o professor Luiz Claudio de Oliveira:

 

Entrevista exclusiva com o professor Luiz Claudio de Oliveira

DM – Como surgiu de fazer esta pesquisa?

Luiz Cláudio de Oliveira –  O que eu fiz foi uma arrumação,  uma adequação do texto, para transformá-lo numa literatura que estivesse mais neste campo de grande narrativa. E também não são várias famílias, temos o estudo de caso de uma família que é composta por três troncos, por isto os Bernardo, os Gloria e os Faustino.

DM – Você pesquisa esta família a partir de quando e de onde?

Luiz Cláudio de Oliveira – Eu estava afastado deste núcleo familiar a muitos anos, porque minha família é matrilinear, e a medida em que entrei para a universidade, fui me individualizando, passei a ter uma vida de família de classe média que se autonomiza e se individualiza, e por isto deixei de ter contato com eles. E a partir de um trabalho que fazia no ITERJ (Instituto de Terras do Rio de Janeiro), em 2002, onde o trabalho era reconhecer as comunidades remanescentes de quilombo no Rio de Janeiro, para fins de regularização fundiária. E conversando com estes grupos familiares, na região do Vale do Paraíba, me dei conta de que o que ouvia daquelas pessoas me lembrava muito o que eu ouvia no meu grupo familiar. E foi em função disso que eu os procurei, porque vivi um período pequeno a fantasia de que eu poderia estar numa família que era remanescente de quilombo e não tinha me dado conta.

DM – Quais membros de sua família foram importantes nesta pesquisa?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Procurei inicialmente um tio,  irmão da minha mãe, e foi quando tive oportunidade de ouvir pela primeira vez o nome dos meus bisavós, e aquilo me emocionou muito. E eu conversei muito com este tio, e resolvi, por conta própria, fazer anotações sobre as coisas que ele me dizia, e aconteceu uma fatalidade, este tio faleceu.

DM – Mas você ainda teve a sorte de conversar com ele

Luiz Cláudio de Oliveira –  Mas conversei com ele muito pouco. Eu tenho certeza de que seu eu o tivesse encontrando antes,  teria tirado muito mais informações importantes sobre este passado.

DM – A oralidade é muito importante, e a história das famílias, na maioria das vezes está registrada nesta história oral que é repassada de geração para geração pelos membros mais velhos da família.

Luiz Cláudio de Oliveira –  Exatamente. Eu percebi, infelizmente, que eles morrem. E como eu estava muito apaixonado por aquela conversa com ele, resolvi  procurar os outros membros da família e fui conversando. E cada vez que eu  encontrava um destes membros antigos da família, passei a registrar estes diálogos, ainda sem saber exatamente o que fazer com estes registros. Mas, fui em frente e registrei estes diálogos por longos oito anos.

DM – A partir de quando você deixa apenas de registrar estes diálogos e inicia um processo de pesquisa científica sobre este tema?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Em determinado momento eu resolvei voltar à universidade porque percebi havia nas narrativas um fato muito singular,  que era que as pessoas da família se casavam entre si. Eu fui me dar conta de que com exceção de minha mãe, muitos tinham se casado entre si, e se casavam assim há muito tempo. Esta era uma particularidade que eu tinha visto nas  comunidades remanescentes de quilombos. Mas a famíila estava longe de ser remanescente de quilombo.

DM – Este tipo de casamento ainda é comum em cidades pequenas do interior de Minas Gerais e Goiás, mas, em particular, o que estes casamentos entre primos e primas chamou mais sua atenção?

Luiz Cláudio de Oliveira –  É comum no interior do país, não só no interior, mas em outros contextos também, quando as pessoas se casam entre si em nome da manutenção de um patrimônio, onde primos se casam ou o tio se casa com a sobrinha. Porque normalmente são famílias de classe média alta, onde tem esta origem rural e que aprenderam a lidar com este tipo de agenciamento matrimonial na própria família, no sentido de preservar patrimônio. No caso deles não, porque são descendentes de escravos e de ex-escravos que se casavam entre si. Isto eu tinha visto em comunidades remanescentes de quilombo e não num grupo familiar extenso que inclusive Rio Claro (RJ), que é a cidade núcleo, já não era mais a única cidade que os matinha,  eles já tinham saído para São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Brasília, Buenos Aires. E a coisa curiosa,  é que eles se reuniram num almoço de domingo para matar a saudade, e quando eles pensaram em fazer esta reunião eles se deram conta de que não eram apenas da família Bernardo eu sou descendente de Bernardo, mas se deram conta de que haviam vários casamentos a partir de três grupos:  que são os Bernardo,  os Glória e os Faustino. E a partir daí se deram conta de que era muito mais gente, e nesta brincadeira, no primeiro encontro que fizeram reuniram cerca de 400 pessoas.

DM – Onde está localizado este núcleo familiar?

Luiz Cláudio de Oliveira –  As pessoas vieram dos locais mais variados como Valença (RJ), Volta Redonda (RJ), Barra Mansa (RJ), Seropédica (RJ) e vários lugares. E aquilo me chamou muita atenção. E daí comecei a entender o que eles queriam quando disseram: “vamos fazer o encontro do ano que vem”. De novo para matar saudade?, pensei. Mas eu fui  no encontro seguinte em 2007, e quando eu estive no encontro é que se começou a falar em fazer uma associação da família Bernardo-Gloria-Faustino. E no ano seguinte tinham criado toda uma estrutura documental e tinham construído uma associação, com CNPJ e isto levou a articulações com a prefeitura de Rio Claro para conseguir espaço para realizar o encontro. Passaram então a se relacionar institucionalmente com o poder público e a mola motriz dos encontros era poder oferecer às novas gerações a história da família senão tudo isto acaba. E isto foi forte para mim, porque eu tinha visto aquele tio falecer. Então comecei a acompanhar não só os encontros, mas o que acontecia no intervalo dos encontros, e voltei a frequentar a família indo nos casamentos, nas festas de aniversários, nos cultos dos setores da família que eram evangélicos, nas missas dos católicos, enfim, passei a frequentar. E no intervalo de um encontro e outro, ocorriam as reuniões preparatórias, e estas me chamaram muito a atenção.

DM – O que de especial havia nestas reuniões preparatórias?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Eu registro isto, como uma das coisas mais fundamentais no livro que é uma família que tem interesse em revisitar a sua própria história, construindo e reconstruindo esta história a partir de suas próprias memórias. Ali eu tomei a decisão de voltar à universidade para estudar isto, e foi quando me lancei a fazer o doutorado.

DM – Como foi estudar a própria família?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Me impactou muito, e por isto fui procurar uma universidade que trata de memória social, e no Rio de Janeiro a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UniRio) possui este programa. E durante a entrevista a banca ficou muito curiosa, até que uma das professoras perguntou se a família do estudo era a minha família, e eu disse que sim. Fiquei preocupado, temendo que este fato fosse inviabilizar a minha pesquisa, mas, no entanto fui aprovado em primeiro lugar. E a partir daí fui ler os autores que estudam a sua própria família, e muitos deles são famosos como Pierre Boudieu (sociólogo francês), Luiz Fernando Dias Duarte (antropólogo) e a minha própria orientadora (professora Edilaine de Campos Gomes), que também estudou a família. E eu me senti muito à vontade para fazer um trabalho de pesquisa no campo da antropologia social para estudar a minha própria família.

DM – Como nasceu a ideia do livro?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Foram oito anos de pesquisas. Quando defendi a tese a aceitação foi de tal monta, que uma editora, a Mar de Ideias, que se propõe a prestigiar os novos autores, resolveu editar o trabalho. A editora resolveu construir uma coleção e este é o primeiro livro da série “Trama de Ideias”.

DM – Há outros estudos sobre este tema, outras pesquisas sobre a constituição das famílias negras no Brasil?

Luiz Cláudio de Oliveira –  É a partir deste livro nós temos a discussão sobre o que, afinal de contas, é uma família negra. Porque a literatura neste campo de ciências sociais, mais especificamente na antropologia social, este tipo de pesquisa é um ineditismo. Por que a gente conta a dedo os autores que estudaram as famílias negras na contemporaneidade.

 

DM – No Brasil não há esta tradição, mas em outros países, como nos Estados Unidos, já foram feitos trabalho neste sentido, como o livro que virou filme e minesérie nos EUA: Raízes.

Luiz Cláudio de Oliveira –  Sim, o trabalho do escritor norte-americano Alex Haley, autor de Raízes, é muito interessante. Ele faz um resgate de memória e mergulha no século XIX. Quando ele fez a pesquisa, ainda no final dos anos 1960, ele conseguiu encontrar as pessoas, muito idosas,  que conseguiram  fazer isto que eu tive o privilégio de fazer, ao conversar com este grupo familiar: fazer narrativas, que levam a outras narrativas, que se emendam a outras narrativas e conseguem deitar esteira na historia lá atrás. Inclusive Alex Haley foi mais feliz do que eu porque conseguiu atravessar o Atlântico, e eu parei no porto.

DM – Até que ponto da história vai a sua pesquisa?

Luiz Cláudio de Oliveira –   Eu fui até a década de 1970 do século XIX. Conseguimos levantar na documentação eclesiástica e na documentação de cartório, algumas referências a este grupo familiar.

DM – O que te marcou nesta pesquisa?

Luiz Cláudio de Oliveira –   O que mais me chamou atenção neste trabalho de memória é esta obstinação deste grupo de fazer uma discussão, o tempo todo, daqui para o passado, principalmente nos encontros preparatórios, que antecedem o grande encontro, do mês de julho. Geralmente a conversa começava em torno de um nome e daqui a pouco outro era citado, e isto estimulava todos os indivíduos a falarem sobre o passado, e, no fundo no fundo, construírem uma história da família autônoma, que não está escrita em livro nenhum. E isto é um dado diferencial. E nesta construção autônoma o tempo todo se referencia ao racismo, ao processo escravista, e inclusive foi nestas referências que eu pude perceber o que chamo de “agências matrimoniais” ou “casamentos por segurança afetiva”.

DM – Nestes casamentos entre si a família tentava se proteger contra a violência racial?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Os Bernardo se instalaram às margens do Rio do Braço, os Gloria, e depois chegaram os Faustino, chegaram dentro da cidade de Rio Claro, dentro de um vale na Serra dos Coelhos. Pouco a pouco, Gloria e Faustino, foram criando laços de amizade, que se transformavam em laços de compadrio, e daqui a pouco se transformaram em laços de casamento. Estes enlaces de casamento, ouvindo as narrativas, fica claro que eles geravam uma possibilidade de uma preservação da violência psicológica do racismo. Isto fica claro porque estes casamentos ocorrem principalmente no período pós-abolição (1888), que é o período onde a população negra deste país continua sendo tratada da mesma forma que era tratada no período escravocrata.

DM – O Estado decretou o fim da escravidão, mas não fez reparos sociais e econômicos aos negros, e isto acabou gerando também novas formas de violência e discriminação.

Luiz Cláudio de Oliveira –  O Estado era capaz de legislar, já naquele período inicial da República, politica de cotas para os imigrantes, mas, literalmente, marginalizava a população de ex-escravos.

DM – Ou seja, o Estado brasileiro doava lotes de terras para imigrantes alemães, italianos mas não fez o mesmo com a população negra deste país.

Luiz Cláudio de Oliveira –  Inclusive estas famílias – a gente vê isto no livro -, são famílias que se deslocam dos lugares onde passaram por este processo da violência corpórea, física, da escravização e se deslocam e fazem parte de um grande movimento migratório que toma conta deste país no período após a abolição. E pouca gente estuda isto também.

 

DM – E você consegue identificar este movimento no tempo e no espaço?

Luiz Cláudio de Oliveira –  Sim, e vamos contextualizando pormenorizadamente com os períodos da história.

DM – Tudo foi registrado?

Luiz Cláudio de Oliveira –  No livro eu publiquei fotos em preto e branco, por razões de orientação editorial, mas eu tenho os arquivos e temos um banco de dados com três mil fotos.

DM – Por quantas cidades está espalhada a família?

Luiz Cláudio de Oliveira –  A parte etnográfica do trabalho trata sobre o que afinal de contas são estes encontros, desde quando as pessoas chegam, das cidades onde ele acontece. Até a produção do livro havia duas cidades onde eles faziam os encontros, que é Rio Claro, encravada no Vale do Rio Paraíba, a cidade base, e a cidade de Seropédica, que é próxima e que, assim como Rio Claro, tem nome de rua de pessoas desta família. O próximo encontro que tenho informação segura vai ser no Estado de São Paulo,  na cidade de Mauá, no Bairro Jardim Isaíra. Isto porque São Paulo foi um lugar onde boa parte da família migrou a partir da década de 1950. E esta parte paulista da família vem ao Estado do Rio nos encontros, e reivindicaram que o próximo encontro fosse feito lá.

DM – Nestes encontros familiares o que mais lhe chamou a atenção?

Luiz Claudio de Oliveira – A parte etnográfica do trabalho trata de reinterpretar isto,  o que está em jogo quando as pessoas se encontram nestas cidades para passar um final de semana juntos. E durante este final de semana tudo tem um significado: o fazer a comida, o abrigar os parentes, o cuidado com as crianças, o registro nas máquinas e nos celulares deste evento, que revela a vontade de um engessamento daquele momento, para perdurar para outros tempos. E a minha tese principal é que estes encontros constituem uma nova forma de organizar a família negra, um novo ethos familiar, que pressupõe que as pessoas vão construindo um nível de solidariedade que inclusive eu associo no último capítulo do livro às iniciativas das ações afirmativas, só que independente do Estado.

DM – Como se dá esta rede de solidariedade?

Luiz Claudio de Oliveira  – As pessoas doam as coisas que não estão mais sendo utilizadas, fazem rateio para ajudar àquele que está precisando de uma ajuda, por exemplo, para fazer uma cirurgia. Os mais velhos conversam com os mais jovens, sobre como esta juventude pode fazer para melhorar o seu rendimento na escola, visando acessar através do Enem o estudo superior. E desse modo as pessoas vão montando um plano de ações afirmativas, independente de uma intervenção externa, como disse, é um outro ethos familiar.

DM – Qual é o conceito de família negra?

Luiz Claudio de Oliveira – Nós também fazemos uma discussão teórica sobre as mais diversas modalidades de família, como a invenção da família patriarcal, ou a família conjugal como a gente conhece hoje, e vou fazendo  uma série de ilações com esta série de autores e autoras que vem construindo um referencial teórico sobre como as famílias vem se transformando ao longo do tempo, tentando mostrar que esta família: os Bernardo-Gloria-Faustino,  independente das pessoas jamais terem lido esta bibliografia -, elas caminham no sentido de produzir uma inovação naquilo que a gente pode representar como família, no caso, família negra. E não sou eu que estou dizendo que é uma família negra, eles mesmo se autodefinem, no estatuto deles inclusive, como família afro-brasileira.

 


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