Cotidiano

Lorinho e Larinha: um drama suburbano

Redação DM

Publicado em 14 de outubro de 2015 às 23:18 | Atualizado há 8 meses

Helvécio Cardoso,Especial para Cidades

Lorinho. Assim era chamado o papagaio (amazona aestiva) que Antônio Eterno levou para sua casa, no distante ano de l980. O bicho estava caído ao chão, ferido. Eterno cuidou dele. Os dois se tornaram amigos inseparáveis. Lorinho era parte da família.

Eterno tem uma netinha, a menina Bruna, de 6 anos. Mora a menina com o avô e a avó, não com os pais. Um drama familiar que dispensa esclarecimento público. Diga-se apenas que dele resultou o fato de a menina ter adquirido transtornos mentais, síndrome de ansiedade, segundo diagnóstico médico-psiquiátrico.

A menina melhorou muito depois que, seis anos atrás, ganhou, de um amigo da família, uma maritaca (aratinga lenchptarma). A menina deu-lhe por nome Larinha.  As duas se tornaram inseparáveis. Larinha dormia empoleirada na cabeceira da cama de Bruna. Fazia alarido se alguém se aproximasse. Era a guardiã da menina.

Lorinho, Larinha, Antônio Eterno e Terezinha Alves de Sousa Menezes e Bruna  eram uma família feliz. Não é mais. A desgraça invadiu lhes a casa, sem bater na porta, na forma de agentes da Secretaria de Cidades, Meio Ambiente e de Recursos Hídricos do Estado de Goiás, cujo titular é o compassivo ex-deputado Wilmar Rocha.

Eterno está aposentado por invalidez. Tempos atrás, ao cair de uma motocicleta, machucou muito a cabeça, ficou sequelado. Vivia pobremente, com a mulher, a neta, o papagaio e a maritaca, em uma casinha no Jardim das Oliveiras, na vizinha cidade de Senador Canedo. Casa com quintal grande, cheios de árvores que Eterno plantou, árvores onde os pássaros de estimação vivam em comunhão com a natureza. Nunca tiveram as asas cortadas. Jamais ficaram presos em gaiolas. Transitavam livremente pela casa. Se quisessem, poderiam bater asas e ganhar o vasto mundo. Nunca o fizeram. O lar de Eterno, Terezinha e Bruna era o vasto mundo deles.

Ninguém sabe como os agentes da Secretaria de Meio Ambiente, Cidades e tantas outras competências, chegaram aos bichinhos. Denúncia de algum vizinho malvado? Nunca saberemos. O fato é que eles chegaram, invadiram a casa, capturaram as aves (“apreenderam”, segundo o eufemismo jurídico-administrativo), e ainda multaram o casal em 25 mil reais.

Tudo isso fizeram indiferente aos rogos desesperados de Eterno e Terezinha, insensíveis aos gritos lancinantes de dor da pequena Bruna. Diga-se de passagem que a pequena, sob o impacto emocional do golpe abrupto, caiu em profunda depressão. Chora o tempo todo, não come, não dorme, se dorme tem pesadelos, não vai à escola, não sai de dentro da casa. Terezinha, oprimida pela dor, definha a olhos vistos. Eterno perdeu a vontade de viver.

Advogada dos desvalidos

Carolina Pereira: Advogada teme que os bichinhos já estejam mortos (Fotos: Cristóvão Matos)

A jovem advogada Carolina Pereira resolveu fazer da advocacia em prol dos desvalidos um sacerdócio. Quase sempre recebe seus honorários na forma da eterna gratidão dos que ela ajuda. Até recentemente, foi presidente do PMDB-jovem, tendo deixado a militância partidária por não ver mais sentido na luta alienada pelo poder.

Filha de Clarismino Jr., uma lenda da advocacia goiana, pioneiro do direito ambiental, Carolina segue as pisadas do pai. Especializou-se em direito ambiental. Sabe tudo do negócio. Foi com esta bagagem profissional, inflamada por um ardor quase místico que concebe a advocacia como serviço, que ela aceitou patrocinar a causa de Antônio Eterno, Terezinha e Bruna.

Ganhar a demanda nos tribunais foi fácil. Difícil está sendo enfrentar a teimosia dos agentes do órgãos.  Eles não cumprem as reiteradas ordens judiciais de devolução dos pássaros. Já esgotaram todos os recursos que a lei lhes faculta. Recursos meramente protelatórios, para ganhar tempo. Recursos improvidos, todos eles.

Os subordinados do dr. Wilmar Rocha, aquele que tem o domínio dos fatos – coisa muito em moda nos brasileiros -, vêm sistematicamente afrontando as autoridades judiciárias. O Tribunal os manda devolverem os bichos; eles não devolvem. Aplica multa diária por descumprimento de decisão judicial; eles nem ligam. Manda que apresentem em juízo os bichinhos; eles nem dão bola.

Afrontosamente desobedecem a Justiça e nada lhes acontece. Não são suspensos, não são exonerados, não são presos. Estão acima da lei, além do bem e do mal. Carolina tem fundadas suspeitas de que esses funcionários não obedecem ao que  Egrégio Tribunal de Justiça de Goiás mandou por que já não há possibilidade de obedecer. A valente advogada acredita, louvando-se em informações de cocheira, que os bichinhos foram soltos na natureza.

“E se isto tiver mesmo acontecido, já morreram, pois não estão adaptados à vida selvagem, não sabem se defender de predadores nem obter o próprio alimento”, conjectura Carolina.

Não há outra explicação para a relutância dos agentes públicos em desafiar, de forma tão arrogante, a decisão judicial, pois até a perversidade tem limites. Posto que não podem mais dar conta dos pássaros, dos quais são meros depositários (infiéis, quem sabe!), perseveram numa luta judicial inglória, acreditando futilmente que, se lograrem êxito, não terão como ser responsabilizados pela maldade que cometeram.

Tribunal faz Justiça

Família sofre com a perda das aves (Foto: Iris Roberto)

Na petição inicial do Mandado de Segurança que Terezinha  impetrou contra o ato abusivo dos agentes, Carolina expõe em quase 30 laudas como tudo aconteceu e sustenta o direito da humilde família de Senador Canedo.

Está certo que a lei protege a fauna silvestre. A própria Carolina afirma ser a primeira a sair em combate aos traficantes de animais selvagens, aos amantes da caça predatória. Mas o caso levado ao TJE não ser enquadra nos casos de defesa do meio ambiente. Somente os animais selvagens em vias de extinção, assim listados pelo Ibama, são objetos de apreensão. Estes não podem ser criado em cativeiro. Os órgãos ambientais dispõe que tais animais devem ser, depois de apreendidos e tratados, levados para centros de readaptação. Somente depois de reaprender a ser selvagens é que esses bichos serão devolvidos à selva.

Não é o caso dos papagaios e das maritacas. Esses animais estão fora da lista dos animais em vias de extinção. Na verdade, são quase uma praga. Eles proliferam até nas grandes cidades. São altamente domesticáveis. Apegam-se facilmente aos seus donos. Desenvolvem para com eles relações inquebrantáveis de afeto.  Tanto que o Conselho Nacional de Meio Ambiente, o Conama, editou resolução, de n° 457, “dispondo sobre o depósito e a guarda provisória de animais apreendidos pelos órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional de Meio ambiente”.

Carolina demonstrou com base na lei e nos regulamentos, e com base em reiteradas decisões judiciais, que criar papagaios não é infringir o direito ambiental. Criar papagaios e congêneres não é o mesmo que criar uma jaguatirica, digamos. O próprio Ibama orienta seus agentes a ponderar sobre valores insculpidos no ordenamento jurídico, devendo privilegiar a dignidade da pessoa humana em casos peculiares, “como aqueles em que o animal, no convívio familiar, se tornou imprescindível para oferecer melhor qualidade de vida a pessoas com dificuldades especiais ( idosos, enfermos, crianças com dificuldades mentais ou físicas).

Parece até que o redator da Orientação Jurídica Normativa n° 03/09/PFE do Ibama estava pensando em Eterno, Terezinha e Bruna, em Lorinho e Larinha. A jurisprudência aplicável ao caso é remansosa e pacífica. Carolina transcreve inúmeros julgados, oriundos dos mais diversos tribunais.

O TJE concedeu a segurança pleiteada através de decisão liminar, da lavra do juiz Roberto Horário Rezende, servindo como desembargador substituto, e a quem o caso foi distribuído. O documento é volumoso. A fundamentação é meticulosa. O relator examinou cuidadosamente cada detalhe do caso. Acatou toda a aprofundada argumentação da advogada Carolina Pereira.

Mas a causa não estava ganha. Ainda não está.

Ostensiva desobediência

Decisão do TJE: afrontosamente desobedecida pelas autoridades coatoras (Reprodução)

Quando Carolina providenciou o cumprimento da liminar, as autoridades subordinadas ao dr. Wilmar Rocha se negaram a cumpri-la. Assim, sem cerimônia. Alegaram que não a cumpririam porque iriam recorrer. Mais um abuso, somado ao primeiro. Alguém deixou de ensinar a esses funcionários excessivamente zelosos que decisão judicial se cumpre,  depois se discute.

O Estado de Goiás, a que pertence o órgão em que trabalham os sequestradores de papagaio, ingressou com o manjado recurso denominado “agravo regimental” visando cassar a liminar. O TJG decidiu – vamos resumir aqui – que não havia qualquer fato novo que justificasse a modificação da decisão anterior. O recurso foi “improvido”, isto é, despachado ao arquivo. Antes de decidir, novamente o relator discorreu longa e rebarbativamente sobre o tema, invocando leis, transcrevendo autores consagrados, citando a jurisprudência.

Convém transcrever uma passagem do longo arrazoado do magistrado: “… consta que a devolução das aves – aclimatadas em suave cativeiro, sem sofrer maus tratos e sendo bem cuidadas – aos seus habitas naturais ou mesmo à entrega a zoológicos não seria razoável tendo em vista que já estão adaptadas ao convívio humano há muito tempo; já perderam o contato com o habitat natural e estabeleceram laços afetivos com a família da autoria, de modo a tornar a mudança arriscada para a sobrevivência das aves, com perigo de frustração da readaptação”.

“Não seria razoável”,  afirma o juiz. Aqui o caso se coloca diante domais sagrado de todos os princípios de hermenêutica jurídica: o princípio da razoabilidade, que anda de par com este outro princípio não menos sagrado: o da proporcionalidade.

O legislador quase sempre tem a vã pretensão de ter criado a lei perfeita, tanto que Justiniano, no final de sua célebre codificação, proibiu toda e qualquer exegese, Nenhuma interpretação que não a literal poderia ser admitida. Mas as leis, fruto da experiência passada, dirige-se para o futuro, e ali tropeça na perplexidade do fato novo. Se aplicada mecanicamente, com régua e compasso, como fazem os maus juízes e os administradores sem coração, conduz a resultados absurdos, a situações iníquas – no que se apresenta como a própria negação do direito, um insulto à mais elementar ideia de justiça.

O aplicador da lei, seja juiz, seja agente administrativo, há que ser razoável, há que atentar ao fim social a que ela se dirige, há que buscar a exata proporção entre o fato e a letra. Pois entre o fato e a letra da lei está o espírito. Já são Paulo ensinava, a respeito da Lei Mosaica, que a letra mata, só o espírito vivifica – tal é a síntese dialética do cristianismo.

Em busca de Lorinho e Larinha

Os dois pássaros apreendidos foram depositados no Centro de Triagem de Animais Silvestres, umas repartição do Ibama, órgão federal.  Mesmo à vista de ordem expressa do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás  para entregar os bichinhos aos seus legítimos donos, os dirigentes daquela autarquia declarou que só os devolveria mediante ordem escrita da Secretaria Estadual de Cidades e etc. etc., a Secima. Esta sugeriu solicitação por escrito, devidamente protocolada. Vários pedidos protocolados, carimbados, autuados… e nenhum despacho, nenhuma providência.

A odiosa burocracia – sempre na contramão da razoabilidade – vai, assim, frustrando a decisão judicial, tornando letras mortas as belas e sábias palavras do relator do processo. Carolina, incansável, se levantando altiva a cada tropeço, requereu judicialmente a notificação do Ibama para que entregue os bichinhos.  Como medida extrema, requereu seja decretada a prisão dos funcionários cabeçudos.

Mesmo que Lorinho e Larinha sejam entregues vivos aos seus donos, é imperioso que se punam os funcionários que tiveram a petulância de desobedecer ordem judicial. A ordem pública está a reclamar que tanto os funcionários da Secima como os do Ibama seja responsabilizados cível, pena e criminalmente pela mau que fizeram. O governador Marconi Perillo e o secretário Wilmar Rocha não podem ser complacentes com funcionários abusados que desafiam o poder judiciário. Se não há respeito pela dor de um humilde casal de velhos e pelo desespero de uma criança doente, que se respeitem ao menos as instituições.

 

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