Memórias de um viciado
Diário da Manhã
Publicado em 12 de janeiro de 2016 às 01:32 | Atualizado há 4 meses
O aposentado Leopoldo Rosa da Silva, 61 anos, narrou à reportagem do Diário da Manhã que a criação da ONG Viver Sóbrio surgiu da necessidade de recuperação de um membro de sua família, viciado em bebida alcoólica. A casa de recuperação de dependência alcoólica atende hoje 15 pessoas que participam dos Alcoólicos Anônimos (A.A.).
“Ele (o parente) não conseguia parar, foram mais de 25 anos no vício, senti a necessidade de tirá-lo do meio onde ele vivia. Foi quando decidi transformar uma casa que tinha para alugar em casa de apoio para ajudar pessoas em situação de rua, de mendicância e dependência de uso de drogas”, descreve. A iniciativa de Leopoldo vai além da decisão de ajudar um ente querido da família, ele revela que durante 18 anos também foi dependente alcoólico.
“Comecei a beber aos 12 anos de idade por curiosidade, depois pelo efeito, e fui aprofundando mais porque o álcool tem esse poder. Bebi dos 12 aos 30 anos, foram 18 anos na dependência, até chegar um dia que encontrei uma porta aberta que me fez despertar para o lado da sobriedade, que me fez reconhecer o problema do alcoolismo, a doença”, conta.
Antes de compreender e aceitar que precisava de ajuda Leopoldo recorda que praticamente foi excluído pela família. “Cada vez mais fui me afastando da minha família até chegar um ponto que minha vida se tornou um caos total. Passei a viver em um mundo sob o efeito do álcool”, diz. Ele avalia que aceitar a doença e passar pelo processo de recuperação é uma decisão evolutiva e que com o tempo as mudanças ocorrem conforme a vontade do indivíduo.
“Foi muito difícil passar pelo processo de recuperação. Mas aos poucos despertei e passei a gostar da vida. Antes eu era um escravo do álcool, com o tempo fui despertando para uma vida melhor e entendendo o papel de ajudar ao próximo, pessoas que também se encontram na mesma situação que um dia me encontrei”, define.
Viver na rua
“A experiência mais dolorosa que já passei foi viver nas ruas”, descreve Tiago Pereira dos Santos, 32 anos, que durante alguns meses vagou pelas ruas da capital por ter se tornado vítima do álcool. Quatro meses foi o tempo que ele ficou nas ruas de Goiânia, mas começou a beber aos 15 anos de idade. Conta que começou beber por curiosidade e influência de amigos.
“Eu bebia de mais e por isso me tornei uma pessoa agressiva dentro da minha própria casa e com isso minha família não suportou mais a situação o que me levou para a casa de recuperação, da casa de recuperação fugi para as ruas e não voltei mais para casa”, expõe.
Ele recorda que foram dias de medo o tempo em que ficou nas ruas. “Foi bem na época que estavam matando pessoas em situação de rua. Isso gerou muito pânico não só em mim, mas em muitos que estavam na mesma situação”, declara. Hoje Tiago mora na ONG Viver Sóbrio após receber um convite para se recuperar do vício.
Ele conta que tem uma filha de seis anos, mas a pequena não sabe o que se passou na vida do pai. “Minhas expectativas em relação a minha filha são a melhores, quero dar orgulho para ela”. Hoje Tiago atua como coordenador na casa de recuperação a qual faz parte e a ajuda que recebe envia para a filha que mora em Marabá município do estado do Pará, sua cidade de origem.
“Ainda não voltei a ver minha família porque sinto muita culpa ainda por tudo que aconteceu, mas pretendo um dia visitá-los, voltar a ser uma pessoa normal que consegue conviver na sociedade sem vícios”, desabafa.
Um sonho perdido
João de Assis Tavares, 40 anos, era casado e pai de três filhas. Sua profissão ele descreve, “era um faz tudo: gari, pedreiro, pintor, operador de áudio, hoje auxiliar de limpeza”. Descreve que durante um tempo foi feliz ao lado da mulher e filhos, mas a companheira era usuária de drogas e João preferiu ir morar nas ruas.
“Descobri que minha esposa usava crack. Ainda suportei dois anos, mas não aguentei a situação fui morar na rua, em qualquer lugar. Teve certo tempo que fiquei sem beber, mas na rua não dá para ficar sem beber, porque a rua não é para ninguém. Durante o dia até que dava para suportar, mas à noite é difícil demais aguentar”, justifica.
Foi na rua que João se tornou dependente do álcool e do cigarro. Ele morou na rua durante três anos. “Conheci um colega de rua que já havia passado pelo processo de recuperação na ONG e foi quando resolvi conhecer. Fiquei um tempo, mas fui fraco e tive uma recaída e sai da casa e fiquei uma semana na rua e resolvi voltar e tive outra chance e estou até hoje com um pensamento mais positivo”, afirma.
Hoje João está bem, estabeleceu contato com a família, principalmente com as filhas, mas não sabe do paradeiro da ex-mulher que na época era usuária de crack. “Você não imagina o tanto que lamento ter perdido toda minha família é como se fosse uma bomba, queria que fosse diferente, mas não foi, vou recomeçar de novo”, conclui.
A ONG Viver Sóbrio é mantida basicamente pelo fundador e precisa de apoio para melhor manter o local. “Qualquer ajuda é bem vinda, mas alimentos e produtos de higiene é fundamental. Pedimos ainda que caso as pessoas queiram se voluntário se disponibilizando a ajudar com o conhecimento que têm estamos de portas abertas”, acrescenta Tiago Pereira dos Santos.
Dependentes do álcool
Para a psicóloga e professora do departamento de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) Juliana Santos de S. Hannum o que torna uma pessoa dependente do álcool são dois fatores: o psicológico e o ambiental. Contudo, ela indica que vários estudos defendem uma tendência genética.
Os fatores psicológicos, ela explica, podem ser percebidos através da tendência à ansiedade, insegurança, medo ou angústia, para os quais o indivíduo busca alívio por meio da bebida. Enquanto os fatores ambientais que interferem nos padrões do consumo, são os hábitos familiares, a cultura da sociedade, estimulando ou restringindo, a oferta de bebidas, a informação, a propaganda e dentre outras influências no desenvolvimento das relações da pessoa com a bebida.
“A interação desses fatores, psicológicos, sociais e biológicos bem como as decisões e comportamentos do indivíduo, que podem determinar o processo no qual a pessoa ficaria, gradualmente, ao longo dos anos, dependente do álcool”, esclarece.
Hannum observa que para que a família ou o próprio dependente alcoólico possa lidar com esse drama é preciso que se pare de negar a doença. “A negação não ocorre só por parte do dependente, mas também da família. É importante que o indivíduo receba um apoio emocional e afetivo dos seus entes queridos, porém, todos devem compreender suas limitações no processo e ir em busca de uma ajuda especializada (médico, psicoterapeuta, grupos de apoio)”, cita.