Cotidiano

Metade do país sem plano para menores

Diário da Manhã

Publicado em 27 de setembro de 2015 às 07:55 | Atualizado há 10 anos

RIO — Metade dos estados do país ainda não conta com plano para atender menores que cometem infrações — apesar de o prazo legal para isso ter acabado em novembro de 2014. O dado é parte de levantamento da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência, sobre a implantação de planos de atendimento socioeducativo — que, segundo lei de 2012, estados e municípios deveriam criar com ações e metas por dez anos. Segundo a SDH, até julho 11 estados e o Distrito Federal não tinham o instrumento, exemplo do despreparo para lidar com adolescentes que precisam ser reeducados no país.

Há estados que até possuem planos na área, mas não de acordo com o previsto na lei de 2012, que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Mesmo naqueles que já criaram esse plano, o quadro é crítico. Relatório de 2014 do Conselho Nacional do Ministério Público aponta que 63% dos estados (17) têm unidades de internação superlotadas. Além disso, 70% deles (19) têm de 50% a 100% das unidades insalubres — e todos aqueles onde 100% das unidades são insalubres (Amapá, Pará, Mato Grosso e Roraima) têm plano decenal.

— Há um atraso na implementação dos planos. A principal dificuldade é a decisão política de dar atenção à área. Às vezes, apoiar políticas como essas é visto até como algo que tira voto — afirma o promotor José Augusto Peres Filho, da Comissão de Infância e Juventude do CNMP.

— O atraso poderia configurar até improbidade administrativa — diz Janaina Pagan, promotora de Tutela Coletiva Infracional do Rio.

Outro problema é que só 16,1% das unidades no país separam os adolescentes pelo tipo de infração, diz o CNMP. Em muitos estados, a separação é por facção, como nas prisões do mundo adulto.

— Os meninos incorporaram a realidade da prisão. Reproduzem o sistema carcerário, a linguagem de lá — diz Antonia Lima, promotora de Infância e Juventude do Ceará.

— A internação e a semiliberdade acabam sendo a vala comum, quando a liberdade assistida (feita pelos centros municipais de assistência social) e medidas alternativas deveriam ser as mais usadas — diz a juíza Raquel Christino, coordenadora de Articulação das Varas de Infância do Rio.

Outro ponto que deve constar nos planos, diz Julio Almeida, do MP-RS, é “o acompanhamento da reincidência”. Segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça de 2011, quando o menor reincide, cresce a chance de cometer infração mais grave.

— Aqui no Pará, mais de 90% dos reincidentes estavam evadidos da escola. Na primeira internação, também mais da metade já eram evadidos — diz a promotora Monica Freire, do MP-PA.

— Um menor no sistema socioeducativo deveria sair profissionalizado e na série correta — diz Sérgio Harfouche, promotor no MS autor de projeto que faz com que o adolescente repare na própria escola algum dano que cometer lá.

Segundo a SDH, não há sanção para os governos que não implantaram seus planos no prazo.

— A União poderia condicionar repasses à implantação e à execução de metas desses planos — afirma Peres, do CNMP. — Mudar a realidade sem um mínimo de planejamento é bem mais difícil.

PUNIÇÃO X RESSOCIALIZAÇÃO

X. A faca na cestinha da bicicleta, os golpes no corpo da menina, a blusa suja de sangue. São imagens que não lhe saem da cabeça. X. tinha 17 anos quando foi internada por tentativa de homicídio. Era maio de 2012. Naquele dia, antes do ocorrido, o telefone tocou em sua casa às 19h em ponto. Era M., um ano mais velha, dizendo que tinha marcado um encontro com a vizinha, desafeto das duas. Elas a culpavam pelo espancamento do primo de X. por uma facção rival, meses antes.

M. a buscou em casa de bicicleta e foram para o lugar marcado. Quando a vizinha chegou, se assustou com a presença de X. e tentou fugir.

— Quando eu vi, ela estava caída no chão, minha amiga pegou uma faca na cestinha da bicicleta e começou a enfiar nela. Eu pensei: onde eu vim parar? Eu não fiz nada, mas falam que cúmplice é até pior — disse X., contando que M., maior de idade, foi condenada a 9 anos de prisão. A jovem esfaqueada ficou um mês em coma, mas sobreviveu.

Depois de quatro dias presa na delegacia da cidade, foi levada a uma unidade de internação no Rio.

— Não queriam me receber porque falavam que eu não tinha tamanho de menor e que a identidade podia ser falsa.

Foi colocada em um alojamento com outras duas meninas que a encheram de perguntas. Era a “carne nova” do pedaço, como se referiam às novatas. No dia seguinte, foi algemada e levada à primeira audiência. Acabou ficando 1 ano e meio na unidade feminina, depois de ter três habeas corpus negados pelo juiz, e outros 6 meses em uma unidade de semiliberdade mista.

— Fiquei esquecida ali dentro. O juiz dizia que os relatórios de bom comportamento não pareciam ser da mesma pessoa internada por tentativa de homicídio.

Nas duas unidades por que passou, X. relatou problemas:

— Uma menina levou uma porrada na boca no mesmo dia que tinha operado o dente. Era soco, pisões com coturno que deixavam as meninas marcadas. Tinha outra menina bem pequenininha que o funcionário pegou pelo pescoço e tirou do chão — afirmou, contando ainda que o mesmo funcionário perseguiu uma adolescente com spray de pimenta, deixando um rastro nas paredes da unidade e fazendo uma psicóloga passar mal.

Apesar dos excessos, X. disse que foi bem tratada durante o período de internação. Estudava e fazia cursos técnicos. Ela se queixou, no entanto, da alta rotatividade de funcionários:

— Era horrível, porque quando eu me acostumava com uma psicóloga, trocava, aí tinha que contar a mesma história, reviver aquilo tudo.

Da unidade mista, de onde podia sair na sexta e voltar na segunda, lembra que, diante de qualquer ameaça dos funcionários, os meninos pulavam o muro e fugiam.

Passados três anos do ocorrido, X. diz que sua dívida está paga:

— Foi difícil, mas cresci muito. Não fico culpada, paguei o que devia.

A jovem, que acaba de completar 21 anos, está hoje terminando o último ano do Ensino Médio, trabalha com o tio em um depósito de bebidas e pensa em ir mais longe: no ano que vem, planeja começar um curso de enfermagem.

 

Y. — Sabe aquelas madeiras de segurar telha? É uma daquelas, que eles raspavam nas pontas. A gente chamava de “Alcione”. Tinha a “Kelly Key” também. É um cabo de enxada — narra o adolescente de 18 anos, e gesticula nos detalhes. — E tinha a “Sexta-Feira 13”. É uma borracha. Batia, aí envergava.

A série de apelidos é uma classificação de porretes. Foi o modo que menores internados numa unidade socioeducativa no Rio, o Dom Bosco, encontraram para descrever os objetos que funcionários da unidade usariam para bater nos internos. O adolescente que conta sobre eles já esteve por lá — em algumas das 23 vezes em que passou por abrigos e unidades socioeducativas provisórias e definitivas no estado. Aqui, seu nome será Y.

Dava trabalho na escola, o menino Y. Bagunça, brigas, repetência, tudo antes de fazer 10 anos.

— Eu era… era muito ativo — lembra, num sorriso sem jeito.

O pai só quis falar uma vez — pelo telefone. Nunca se viram. A mãe tinha outros filhos e trabalhava. Que ele ficasse com os avós, pensou a mãe. Mas também trabalhavam.

— Minha tia morava lá também. Mas saía muito. Eu que me criei.

Foi uma criação com muita pernada pela rua. Assim é que, dos 6 aos 9, Y. conheceria “uns garotos que pegavam coisa em loja”.

Com 9, voltou a morar com a mãe. Mas a rua já era hábito. Até que Y. inventou de brigar com filho de traficante, o homem foi tirar satisfação, a mãe se desesperou e procurou o Conselho Tutelar. Resolveram que o jeito era mandar Y. para um abrigo do Conselho. Foi a 1ª das 23 idas a abrigos e internações.

Num dos abrigos — que não são unidades socioeducativas, mas locais para menores “em risco”, como moradores de rua —, Y. conheceu um rapaz que era “o rei do 157” onde morava. O epíteto do novo amigo se referia ao artigo 157 do Código Penal: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem”. Y. foi para o roubo para valer. Com 13, a 1ª internação.

— Fui CTR (Centro de Triagem e Reabilitação), depois Dom Bosco. Ali batem mesmo — conta o garoto, e lembra um episódio no CTR: — De noite, a gente ouvia às vezes a tranca de alguma cela abrir. No dia seguinte, algum menino de lá que fosse gay… ele aparecia com lanche do McDonald’s.

pro,pro

Com 15 para 16, Y. passaria pelo João Luiz Alves. Ali, teve a única experiência de profissionalização em toda essa trajetória. Em 2014, chegaria ao Santo Expedito. É um “educandário”, mas fica dentro do complexo penitenciário de Bangu.

— Ali uma vez me deram soco na costela, soco na costela… Numa hora em que eu com a boca aberta, jogaram spray de pimenta. Ali você chega, perguntam: “Qual facção?”. Se não tem, falam: “Mora onde?”. Aí fica com os outros da facção de onde você mora — conta, e faz uma pausa. Conclui: — Esses lugares (as unidades)… A única coisa que tem de bom é vivo. Ali é um olhando todos e todos olhando um, uma fábrica de dar pancada. Você fica preso com pessoal do tráfico, com “gerente”… Nunca que alguém vai conseguir melhorar lá dentro.

tava,tá


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