Morre o mito Belchior
Redação DM
Publicado em 30 de abril de 2017 às 15:15 | Atualizado há 7 meses
Um dos personagens mais emblemáticos da música popular brasileira, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, nome em homenagem ao principal compositor de óperas do Brasil (Carlos Gomes), deixou um curso de medicina e os sonhos de ser seminarista para cantar.
Tornou-se Belchior, o bardo que percorreu o mundo com um violão e frases fortes para falar de realidades nunca perfeitas.
Agora, esse folk-MPB, espécie de Bob Dylan do Brasil, ele se encantou. Morreu e não está mais entre nós.
Interpretação de Belchior para “Divina comédia humana”
Belchior morreu na noite de ontem, sábado, 29, em Santa Cruz, no Rio Grande do Sul. Não se sabe ainda as causas da morte, mas o bardo estava em uma vida desnorteada após dar os ombros para sua carreira e as antigas sociabilidades. Enfim, viveu sua vida privada.
Ele chegou a ser socorrido pelo SAMU. Estava em casa com a namorada e produtora cultural Edna Prometheu.
Por força do destino, uniu tango argentino com a MPB, o rock anos 60 com o cancioneiro do nordeste. É um dos grandes autores da música brasileira, principalmente pela verve de suas letras e termos composicionais.
Não faltam hits em sua estrada, como “Como nossos pais”, que relata um diálogo entre pai e filho, interpretada por ele e artistas do quilate de Elis Regina.
Interpretação de Elis Regina para “Como nossos pais”
No dia 26 de outubro de 2016, ele completou 70 anos, mas completamente fora do nível. Belchior abandonou o show business desde 2009, quando foi visto pela última vez no Uruguai.
Deixou dívidas para trás, quadros que pintou, uma Mercedez Bens e vários outros carros perdidos. Em um aeroporto, a dívida pelo estacionamento chegou a R$ 20 mil.
É Belchior que abriu as portas das mídias da região Sudeste para a música do nordeste, com uma grande capacidade de sintetizar a cultura brasileira, que na época era bombardeada pelas manifestações internacionais.
Menos ingênuo do que Chico Buarque, por exemplo, ele bebeu da mesma fonte. Todavia, a entortou a um modo rural-urbano que aprendeu observando os cantores de sua terra. Tinha um diferencial: amava os Beatles.
Interpretação de “À palo seco”
Na infância, Belchior construiu sua personalidade forte: repentista e cantador de feira, aprendeu a se solidificar como artista. Quando John-Paul-George-Ringo estavam no auge, ele estudava filosofia no Ceará e carregava dúvidas existenciais. Mais alguns anos e foi cursar medicina. Até que no quarto ano decidiu abandonar o curso quando descobriu que o ofício era uma profissão como outra qualquer.
O governo do Ceará realizará o sepultamento em Sobral, cidade do cantor. Ele próprio disse que desejava ser enterrado no cemitério da cidade, onde está também sua mãe.
O governador Camilo Santana decretou luto oficial de três dias em homenagem ao artista.
“Recebi com profundo pesar a notícia da morte do cantor e compositor cearense Belchior. O povo cearense enaltece sua história, agradece imensamente por tudo que fez e pelo legado que deixa para a arte do nosso Ceará e do Brasil”, escreveu.
ESTETA
“Como nossos pais” é uma das canções mais populares de Belchior. Conforme o artista, ela surge da vontade “explícita e direta de fazer uma canção ácida e amarga reflexiva sobre a condição sempre mutante do jovem, principalmente na era da comunicação. E ela traz inclusive o comprometimento político que essa mudança acarreta. Como a juventude muda, quis fazer uma canção que fosse além do conflito de gerações. E que falasse sobretudo da alma do jovem urbano e provinciano. Por isso acho que ela soa atual. Digo que o autor não tem tanto distanciamento. Eu estou comprometido com seu personagem. Me identifico com este drama e conflito. E com o contraste que ele traz”, disse, em uma entrevista para o professor de português Pasquale, em 1996.
A obra tornou-se mais conhecida na medida em que um vulcão a interpretou. Após passar pela voz de Elis Regina, em 1976, a carreira da gaucha se consolidou.
Interpretação de “Como nossos pais”
A música dos Beatles aparece na obra de Belchior de forma pontual, seja nas letras seja em arranjos. A melhor demonstração desta inclinação beatle é visível em “Saia do meu caminho” (ou o original “Comentários a respeito de John”), obra que traz arranjos mais complexos, com banjos e violinos.
Vem dos Beatles tais considerações populares que misturam estilos e instrumental.
Mas a letra entrega tudo: “A felicidade é uma arma quente”. A menção é inspirada na música de John Lennon “Happiness Is a Warm Gun”, gravada em 1969 no disco branco da banda inglesa.
Na letra, Belchior fala com John Lennon: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decido a minha vida/ Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol/ Porque bate lá o meu coração/ Sonho e escrevo em letras grandes de novo/ pelos muros do país/ João, o tempo andou mexendo com a gente, sim./ John, eu não esqueço, a felicidade é uma arma quente/ Queeeeeente, queeeeeente….”
Interpretação ao vivo de “Comentário a respeito de John”
Apesar dos últimos anos serem de perplexidade para quem acompanhava Belchior, que teria largado a vida “tradicional”, ele sempre foi complemente sóbrio em seus comentários. Suas opiniões, por exemplo, sobre o cenário musical contemporâneo brasileiro sempre soaram coerentes.
Ele acredita que existam duas espécies de música brasileira: a tradicional e aquela criada para atender ao sucesso imediato. Ele diz que escuta profissionalmente e chama as novas manifestações de “música de verão”, que tem preferência no “público dançante”, mas sem interesse estético.