Não queria ser mãe
Diário da Manhã
Publicado em 23 de agosto de 2016 às 02:59 | Atualizado há 9 anos- Afinal, o trauma pelo qual a garota passou por si só já não era castigo suficiente?
- Jovem que abortou em uma unidade de saúde da capital e abandonou o feto dentro da lata de lixo do banheiro foi presa, será julgada e, se condenada, poderá
pegar até 3 anos de prisão
A questão do aborto, longe de se tornar um consenso, continua a causar polêmica e dividir opiniões. Dessa vez, o foco da discussão é a jovem de 22 anos que, após tomar medicamentos contraindicados para gestantes em excesso, abortou dentro da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Jardim Curitiba no último domingo (21), (quando foi buscar atendimento médico após passar mal por causa dos remédios ingeridos) e abandonou o feto na lata de lixo do banheiro da unidade. Ela, que já havia saído da UPA quando funcionários encontraram o feto, foi identificada, presa em flagrante e passará por julgamento que poderá levá-la a ficar até 3 anos na prisão.
Segundo informações veiculadas na mídia, a jovem é natural de Darcinópolis (TO) e atualmente morava na casa dos tios em Goiânia. Ela é formada em Direito, estava estudando para passar no exame da OAB e o bebê era fruto de um relacionamento que teve com um homem em Araguaína (TO). No momento do atendimento médico, ela não informou aos médicos que estava grávida, disse apenas que o mal-estar que sentia era em função de cólicas menstruais. Após expelir o feto, ela ligou para os tios irem buscá-la na unidade. A jovem agora se encontra internada para receber atendimentos necessários pós-aborto.
Punição justa?
Enquanto grande parte da sociedade aprova a prisão da jovem, há quem avalie a pressão psicológica pela qual ela passou, principalmente por parte da família (de quem ela estava escondendo a gravidez), além da falta de apoio do Estado, que não disponibiliza meios seguros de realização de abortos voluntários, o que acabou levando-a a realizar na clandestinidade, correndo risco de vida. Isso sem contar o fato de que, ao buscar ajuda, ainda acabou presa. Há quem questione se o trauma pelo qual ela passou já não seria castigo suficiente.
É certo que o que a jovem fez não parece certo para ninguém, principalmente quando se leva em consideração que a gravidez já estava avançada e o feto quase completamente formado. Mas há quem questione, principalmente nas redes sociais, que se houvesse hospitais autorizados por lei que permitissem a ela interromper a gravidez de forma mais humanitária, com segurança e apoio psicológico, o trauma sofrido por ela seria menor, sendo que o que mais choca no caso (o fato de a jovem ter abortado e abandonado o feto na lata de lixo do banheiro) só aconteceu pelo fato de o aborto ser, além de proibido, um tabu.
É o que defende a internauta Yasmin Renata: “se não houvesse essa proibição, a jovem não precisaria ter abortado em um banheiro, afinal, ela também correu risco de vida. Ela teria feito com assistência. Mas o medo faz a gente ser capaz de fazer muitas coisas. Eu não a julgo e acho que ela precisa mais de assistência psicológica do que de ser presa, porque ela deve estar muito abalada”, comenta.
Questão de classe
Paula Nogueira, 25, mestranda em Antropologia Social e membro do coletivo feminista “Marcha das Vadias”, explica que o caso é mais um exemplo de que o aborto é um problema de saúde pública no Brasil e que precisa ser tratado como tal, independente de crenças pessoais e/ou religiosas. “O fato de o aborto ser criminalizado não impede que mulheres abortem. O que ocorre é que aquelas com um poder aquisitivo maior recorrem às clínicas clandestinas, enquanto as mais pobres se submetem a toda a sorte de situações insalubres e arriscadas, expondo a própria vida. Não por acaso, as mulheres negras, também mais pobres, são as que mais morrem durante abortos clandestinos”, argumenta.
Paula assevera que nos países em que o aborto é legalizado, há regras a serem respeitadas, como o tempo de gestação, que não pode ser superior a 12 semanas e usa como exemplo o Uruguai. “Além disso, há acompanhamento psicológico. Lá (no Uruguai), o número de abortos inclusive diminuiu após a legalização”.
Sobre o acontecido na capital goiana no último fim de semana, Paula defende: “Essa moça ser punida individualmente não resolve o problema dos abortos clandestinos e mortes deles decorrentes, que continuarão a existir sob as péssimas condições, independente de criminalização. O Estado não pode continuar a tapar o sol com a peneira”, conclui.
Recorrência
Acontece que, independente de determinação legal, opiniões ou discursos religiosos, abortos acontecem todos os dias. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 19 milhões de abortos são realizados por ano. Por serem feitos clandestinamente e de forma insegura, causam a morte de 70 mil mulheres.
Além disso, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, realizada no ano de 2010, uma a cada cinco brasileiras de até 40 anos de idade realizou ao menos um aborto durante a vida. Esse fato implica que, independente da ilegalidade do ato, ele é descriminadamente cometido, tanto nas clínicas clandestinas quanto pelas próprias gestantes ou por pessoas conhecidas, e por diferentes meios, como por exemplo, a medicação.
O caso da jovem na UPA, portanto, foi apenas mais um, com a diferença de que, dessa vez, a jovem foi pega. Isso porque a criminalização, além de não impedir que o ato seja praticado, contribui para que abortos sejam realizados clandestinamente e, na maioria das vezes, em condições precárias e inadequadas.
Legislação
Rodrigo Lustosa, 40, advogado criminal, especialista em Direito Penal, mestre pela UFG em Direitos Humanos, professor universitário e conselheiro da OAB-GO, explica que o abortamento segue incriminado pelo Código Penal Brasileiro, legislação que data da década de 40 do século passado. Nele estão tipificados os delitos de autoborto (quando a própria gestante destrói a vida intrauterina) e o aborto praticado por terceiros (com ou sem o consentimento da gestante).
Ele esclarece que “o mesmo Código Penal exclui a incriminação do abortamento quando praticado por médico (e apenas por médico) naqueles casos em que não houver outro meio de se salvar a vida da gestante (aborto terapêutico) e quando a gravidez for resultante de estupro e o aborto for precedido do consentimento da gestante. Além disso, o Supremo Federal entende que o abortamento, nos casos de fetos anencéfalos, não constitui crime”. Nos demais casos, o aborto é considerado crime podendo levar a mulher que o praticou a até 3 anos de prisão, e a pessoa que o fizer na mulher pode ficar até 10 anos presa.
Segundo o advogado, “a deficiência do serviço público no atendimento deste tipo de situação apenas contribui para a busca de meios ilegais para a realização do abortamento, colocando em risco a vida da gestante e a vitimizando mais uma vez”.
Além disso, mesmo sendo permitido pela lei e a jurisprudência, o abortamento em alguns casos, Rodrigo alerta que, na prática, “sobretudo quando a gestação resulta de violência sexual, as mulheres enfrentam dificuldades para exercer tal direito, não sendo raros os casos de recusa médica na realização do abortamento e, também, de exigências prévias, a exemplo do registro de ocorrência policial e autorização judicial”.
O advogado explica que essas barreiras não têm o amparo legal, já que a legislação pertinente não formula qualquer exigência neste sentido, bastando, da perspectiva jurídica, a afirmação da gestante sobre ser a gravidez produto de violência, o que pode ser feito mediante simples preenchimento de documento que formalize tal declaração. “Por isso, as justificativas para as dificuldades impostas à prática do abortamento em virtude de crime de estupro devem ser buscadas não na lei, mas em fatores outros, tais como ignorância e machismo, sendo este último aspecto largamente disseminado na nossa cultura”, argumenta Rodrigo.
“Essa moça ser punida individualmente não resolve o problema dos abortos clandestinos e mortes deles decorrentes, que continuarão a existir sob as péssimas condições, independente de criminalização”, Paula Nogueira, mestranda e membro do coletivo feminista “Marcha das Vadias”