O desmonte do programa nuclear brasileiro
Redação DM
Publicado em 3 de março de 2018 às 20:55 | Atualizado há 5 meses
- O Brasil é o sétimo maior produtor de urânio do mundo e domina, com tecnologia 100% nacional, todo o ciclo de enriquecimento do principal combustível atômico. Mas tudo isso está se esvaindo pelo ralo do entreguismo
O boletim Conexão UFRJ, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em sua edição de fevereiro, dedica suas páginas ao desmonte do setor nucelar brasileiro, algo que deixa o Brasil fora do mercado global.
Construído a duras penas desde os tempos de Getúlio Vargas, o Brasil Potência Nuclear vai ficando cada vez mais um sonho distante. Em vez de progredirmos nesta área, estamos regredindo a passos larguíssimos.
Junto com Estados Unidos da América e Rússia, o Brasil faz parte do pequeno grupo de nações que domina, de modo autossuficiente, o ciclo do combustível nuclear para a geração de energia elétrica. Uma coisa que ninguém diz, porque é meio constrangedor, é que dominar o ciclo de enriquecimento do urânio é adquirir capacidade para fazer a bomba atômica. E o brasil já tem esta capacidade.
Uma bomba atômica, como as que destruíram Hiroshina e Nagasaki, é um artefato relativamente simples. Uma boa porretada sobre uma pequena quantidade de urânio enriquecido provoca uma explosão apocalítica. O pulo do gato está em obter o urânio enriquecido a mais de 90%. Isto o Brasil, graças ao almirante Othon Pinheiro, pode fazer, se quiser. Daí a pressão internacional sobre o Brasil para que desative o seu programa nuclear.
Os outros países ou têm a tecnologia ou a matéria-prima, mas não as duas juntas, diz o boletim. Além dos três citados, somente mais oito países completaram o ciclo tecnológico do enriquecimento do urânio – mas estes dependem da importação do minério. O Brasil é tem a sétima maior reserva mundial de urânio. Temos o insumo e temos o Know how. Isto poderia ser anão apenas fonte de orgulho para os brasileiros como ainda fator de geração de riqueza para a nação, já que a energia nucelar emprega para fins pacífica é muito mais atraente do ponto de vista econômico do que do militar.
Em breve, contudo, o Brasil seja excluído do topo dessa lista. Assistiremos ao completo abandono do seu programa nuclear, que passa por uma dramática crise de financiamento há cerca de três anos. “Esse desmonte só interessa aos países centrais. O Brasil estava na crista da onda há seis anos e era reconhecido internacionalmente. Hoje, isso mudou completamente com a paralisia dos investimentos no setor nuclear”, afirma Aquilino Senra, professor de Engenharia Nuclear da UFRJ, em entrevista concedida ao boletim.
ELETRONUCLEAR FALIDA
A Universidade Federal do Rio de Janeiro é a única no Brasil a oferecer graduação e pós-graduação em engenharia nuclear. De lá saíram os principais técnicos da indústria nuclear brasileira. É lá que se desenvolvem as mais avançadas pesquisas acadêmicas sobre o emprego da energia nuclear. E não poderia ser para menos, já que no Estado do Rio de Janeiro estão as únicas três usinas termo nucleares do Brasil, duas já operacionais e a outra, Angra 3, em fase de conclusão. As usinas pertencem a Eletronuclear, empresa estatal de economia mista controlada pela União.
A situação financeira da Eletronuclear, segundo o boletim, é crítica devido à falta de renovação do seu empréstimo junto ao BNDES para a construção da usina de Angra 3, como atesta em carta pública a Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben). O Banco está exigindo que a empresa assuma encargos da ordem de R$ 30 milhões por mês antes de a própria usina gerar receita, comprometendo o fluxo de caixa da Eletronuclear e o pagamento a fornecedores.
A Aben alerta que a paralisação das obras de Angra 3, com o consequente risco de que não entre em operação, poderá agravar a crise do setor elétrico brasileiro. A usina poderia agregar quase 1.500 Mega Watts à oferta de energia num momento em que se registram baixos níveis de armazenamento nos reservatórios das hidrelétricas.
Num momento de recessão econômica, com um pífio crescimento de 1% ao ano depois de três anos de PIB negativo, as debilidades do setor energético passam desapercebidas e não incluem. Mas, num processo de retomada do crescimento – e o país precisa crescer a pelo menos 4% ao ano para acertar o passo com as demais nações desenvolvidas – o aumento da demanda de energia será crucial. E Energia nuclear jogaria papel preponderante.
Aquilino Senra lembra que o Brasil potencial para ser o primeiro ranking mundial de produção de energia nuclear. Com minério de sobra, o país fez, a partir do fim da década de 70, um extraordinário esforço tecnológico de enriquecimento do urânio, por meio de centrífugas, que surpreendeu o mundo. O Brasil não comprou pacotes tecnológicos, pelo contrário, desenvolveu autonomamente sua própria tecnologia. O responsável por isso, o almirante Othon Pinheiro, um verdadeiro herói da pátria, foi condenado sem provas pela lava-jato, acusado de corrupção. Ele ficou preso mais de um ano e, agora, aguarda em liberdade o julgamento de sua apelação.
Num projeto coordenado pela Marinha, sob a liderança do almirante Othon Pinheiro, com a parceria das universidades e dos institutos de pesquisa, o Brasil passou a dominar essa tecnologia sensível e anunciou, na metade da década de 1980, a sua capacidade de enriquecer urânio. O Brasil tem matéria-prima e tecnologia para galgar à posição de player no mercado global. São mais de 400 usinas nucleares no mundo com necessidade de manutenção e abastecimento de urânio. Um mercado fantástico do qual o Brasil pode participar, não como exportador de urânio in natura, mas de urânio enriquecido, com alto valor agregado.
Diz Aquilino Senra que este é “um mercado que movimenta mais de U$ 20 bilhões, restrito a cerca de cinco países, e que envolve o fornecimento de componentes e de matéria-prima para as usinas. Só que o Brasil ainda não entrou neste mercado global e nem querem que entre”, aponta. Ex-presidente da Indústrias Nucleares do Brasil (INB), empresa que exerce o monopólio da produção e comercialização de materiais nucleares, Senra defende a venda do minério enriquecido, ou seja, com valor agregado, e não do urânio in natura.
SUBMARINO NUCLEAR
São evidentes as vantagens econômicas que pode proporcionar ao Brasil o programa nuclear. Mas este programa tem outro viés, relacionado à defesa do Estado e da soberania nacional. O submarino nuclear tem uma importância geopolítica estratégica para um país tem uma costa extensa, onde há petróleo e minerais valiosos que podem ser explorados.
O Brasil é o único país do mundo que tem um artigo na Constituição que proíbe o uso da energia nuclear para fins militares. Mas o submarino é movido a propulsão nuclear, não uma arma nuclear. Além do submarino nuclear – que deverá ficar pronto em 2029, com atraso de quatro anos devido à falta de recursos.
A tecnologia voltada para o submarino nuclear, com enriquecimento de 20% do urânio, está sendo desenvolvida no Centro Experimental Aramar, em São Paulo. “Na parte civil, o enriquecimento está limitado a 5% exatamente para que ele não possa ser desviado para a construção de artefatos nucleares. E o enriquecimento de 20% se destina a submarinos nucleares ou a reatores para pesquisa”, esclarece o professor.
A PERSEGUIÇÃO A OTHON
Senra afirma que o almirante Othon Pinheiro – engenheiro naval, com mestrado na área nuclear no MassachusettsInstituteof Technology(MIT)– teve papel essencial no desenvolvimento do ciclo do combustívelnuclear. Ecriticaacondenaçãoe a prisão ruidosa do ex-presidente da Eletronuclear no âmbito da OperaçãoLavaJato. “Foiumaoperaçãofeita de maneira espetaculosa. Não havia a necessidade de filmarem a prisão dopresidentedaEletronuclear, àsseis da manhã. A prisão preventiva durou mais de um ano e meio até vir uma condenação em primeira instância, com uma pena de 43 anos. Além disso, não foi apontado nenhum ato de ofício de Othon Pereira em benefício de empreiteiras”, afirma.
O almirante era um integrador das atividades de todo o setor, segundo o professor, e tinha voz ativa na definição da política nuclear do país, com uma visão autônoma e nacionalista. “Era um cientista que incomodava os interesses econômicos das outras nações”, ressalta.
Vale a pena ler, na íntegra, a entrevista do professor, transcrfita do boletim “Conexão IFRJ”:
Entrevista com Aquilino Senra
Como o senhor avalia a possibilidade de fim do monopólio da exploração do urânio?
Durante os três anos em que presidi a INB, entre 2013 e 2016, eu me manifestei no Congresso Nacional contra a quebra do monopólio do urânio, que está previsto na Constituição. E hoje existe uma conversa no governo para quebrar o monopólio e temos que nos posicionar contra isso porque o que querem é vender o minério in natura. Todos têm acompanhado as notícias sobre o programa de privatização da Eletrobrás, uma empresa holding com várias subsidiárias, entre elas a Eletronuclear, que lida com o urânio. Como a sua exploração é monopólio da União, para que a Eletrobras seja privatizada, é preciso que a Eletronuclear se desvincule dela. E esse modelo de como ficará a empresa não está claro.
Como as empresas brasileiras têm sido afetadas pela Operação Lava Jato?
Em relação à Eletronuclear, desde a prisão do almirante Othon Pinheiro, todo o processo de construção de Angra 3 foi interrompido. Nada era assinado, nada podia ser feito e as empreiteiras que estavam construindo a usina estão tentando terminar um acordo de leniência, numa briga entre o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União que não se consegue resolver. O que está acontecendo é que, sob o argumento de combater a corrupção, a Lava Jato está destruindo as empresas brasileiras. A Engenharia Nacional foi desmontada em função desse processo. Em outros países do mundo democrático, nunca se fez combate à corrupção sem se observarem os aspectos estratégicos envolvidos na atividade das empresas. Durante a 2ª Guerra Mundial, grandes empresas alemãs fizeram uso de mão de obra escrava judia. Com o fim da Guerra, os dirigentes das empresas foram a julgamento, mas as empresas se mantiveram intactas. No Brasil, não há uma preocupação dos órgãos de controle da Justiça brasileira em separar a atividade primordial das empresas do processo de combate à corrupção, seja por incapacidade ou por outras razões menos nobres.
A quem interessa esse desmonte das empresas brasileiras e do programa nuclear?
Só interessa aos países centrais. E é evidente que há interesses internacionais por trás disso, não confessados, mas há. Primeiro, são interesses comerciais. Esse mercado do uso da tecnologia nuclear para geração de energia elétrica e produção de radiofármacos para aplicações industriais é extremamente valioso, que se renova anualmente. E os players são poucos, em torno de cinco. A alguns países centrais não interessa que tenhamos essa capacidade tecnológica para que possam tentar vender serviços e tecnologia ao próprio Brasil. E mais, o urânio também interessa fortemente aos países centrais que fazem uso da energia nuclear. Sem ele, a usina não gera energia.
Com a paralisação das obras e o agravamento da crise do setor elétrico, há risco de novo apagão no país no futuro?
Sem dúvida nenhuma. A paralisação de Angra 3 não teve ainda as consequências que poderia ter porque a economia brasileira entrou em colapso. Se ela continuasse crescendo a uma média razoável de 3% ao ano, seria necessário agregar esse mesmo percentual ao ano, pelo menos, em nova geração de energia. Se houver um descompasso, não teremos energia, que foi o que aconteceu em 1999, no apagão, quando o Brasil teve que colocar para funcionar geradores a diesel.
O papel da UFRJ no desenvolvimento da pesquisa e da tecnologia nuclear vem sendo afetado pela crise econômica e queda dos recursos de financiamento?
Boa parte dos engenheiros que trabalha no setor nuclear começou a sua vida profissional nas décadas de 1970 e 1980. A maioria já se aposentou ou está em vias de se aposentar. Então, seria preciso uma renovação de quadros. Por outro lado, há uma perspectiva de se ampliar a matriz energética com um percentual maior da nuclear, e seriam necessários técnicos para isso. Não adianta pensar apenas em investimento em tecnologia, é preciso fazer investimento também em formação de pessoal. Por isso, a UFRJ, há cerca de sete anos, criou o primeiro curso de graduação de Engenharia Nuclear do país, numa parceria entre a Escola Politécnica e o Programa de Engenharia Nuclear da Coppe. Já formamos duas turmas com profissionais extremamente qualificados.
E eles estão conseguindo se inserir no mercado?
Esses profissionais estão sendo contratados por empresas estrangeiras, pela Marinha ou pela empresa a ela associada, a Amazul. Outros estão indo para a vida acadêmica. Portanto, é importante que se defina rapidamente qual é a dimensão do programa nuclear brasileiro para que não continuemos a colocar jovens no mercado sem uma perspectiva de emprego. Mas a vantagem do profissional da área nuclear é que ele é um engenheiro de sistemas, tem uma formação que permite a ele trabalhar em outras áreas. A verdade, no entanto, é que hoje está muito mais difícil para os estudantes conseguirem oportunidades na área de pesquisa e de desenvolvimento de tecnologia, com os cortes nas bolsas feitos pelo governo. Os editais para pesquisa também são cada vez mais raros e, quando saem, muitas vezes os recursos não são liberados. Ou seja, está havendo também um desmonte da área de ciência e tecnologia no país.
A paralisação de Angra 3 não teve ainda as consequências que poderia ter porque a economia brasileira entrou em colapso. Se ela continuasse crescendo a uma média razoável de 3% ao ano, seria necessário agregar esse mesmo percentual ao ano, pelo menos, em nova geração de energia”