“O sistema penalista invadiu a vida das pessoas”
Diário da Manhã
Publicado em 25 de março de 2018 às 00:45 | Atualizado há 7 anos
A sociedade atual é, em parte, uma sociedade do conflito. Famílias brigam internamente e entre si, empresas entram em ruína após se submeterem ao autoflagelo corporativo, vizinhos se enfrentam e se matam, políticos sabotam uns aos outros… A vida neste inferno chamado Terra é extremamente prejudicial, pois sabemos que os resultados são sempre imprevisíveis – e as penas nem sempre proporcionais aos realmente culpados. A dosimetria da lei, mais do que nunca, privilegia poderosos.
E pior: o fracasso do Poder Judiciário, como mediador dos conflitos, ou poder que efetiva a “justiça”, começa a ser desmascarado. Todos já sabem: ele serve ao sistema.
Nesta sociedade sem segurança para os mais fracos (e mesmo para os que se acham fortes), o que sobra é o medo e a estratégia para sobreviver. E viver torna-se sempre um risco.
Por isso a sociedade torna-se tão perigosa. Líquida ou não, ela se vê em um dilema: como comportar a humanidade se o humano é um elemento de dissonância inspirado na violência do Estado para também ser violento?
O teórico argentino da mediação Juan Carlos Vezzulla, psicólogo e presidente do Instituto de Mediação e Arbitragem de Portugal, com atuação profissional na América Latina, EUA e África, está em Goiânia para trazer um alento aos que vivem conflitos no dia a dia: os momentos difíceis sempre existem. Mas com aprendizado e consciência é possível superá-los. A sociedade é que terá que fazer escolhas.
O que Vezzulla fala serve para empresas e relacionamentos pessoais entre maridos e esposas, amigos de escola, torcidas de futebol, etc.
O pesquisador participa nesta semana do seminário “Mediação Familiar”, organizado pela Uni-Anhanguera. No evento, ele éacompanhado pela também mediadora advogada Márcia Rosa. Juan também enfatizará a mediação em empresas familiares, dando exemplos na prática de como ocorre todo o processo.
Nesta entrevista ao DM, o psicólogo com longa experiência em mediação, uma teoria social cada vez mais presente nos discursos cotidianos e acadêmicos, relata como a sociedade pode conseguir sair da armadilha que se enfiou nas últimas décadas e rumar em direção à felicidade e solidariedade. Acredite, é possível.
O Estado promove uma exclusão do cidadão. Faz com que o cidadão seja absolutamente dependente dele. Sua vida passa a ser dirigida pelas autoridades até o ponto de que as pessoas precisam, por exemplo, do Judiciário para tudo”
ENTREVISTA
DM – O que é mediação?
Juan Carlos Vezzulla–Mediação é uma teoria social. Assim como temos a sociologia crítica, dentre outras, só que uma modalidade cooperativa, de convívio e solidária. Com ela, as pessoas podem participar ativamente. Nos mostra que é preciso conseguir uma emancipação para que possamos nos responsabilizar pela nossa vida e a gestão da comunidade.
DM – Mas o Estado não pode fazer isso?
Juan Carlos Vezzulla–O Estado promove uma exclusão do cidadão. Faz com que o cidadão seja absolutamente dependente dele. Sua vida passa a ser dirigida pelas autoridades até o ponto de que as pessoas precisam, por exemplo, do Judiciário para tudo. A mediação é uma proposta de desenvolver as capacidades para fazermos a auto-composição.
DM – Mas ao voltar para a mediação não estamos voltando no tempo?
Juan Carlos Vezzulla–No passado existia a vingança, cujo organizador é a Lei de Talião, só depois veio a auto-composição, o processo. Na verdade, a mediação está além disso. O que sei é que vivemos um sistema penal. Ele hoje atinge a vida de toda a sociedade. Castigamos os filhos que não estão se comportando bem, se o vizinho brigar com outro quem corre primeiro na delegacia terá mais vantagens, enfim, temos vários outros exemplos sociais dessa época atual. O sistema penalista invadiu a vida das pessoas em todos os campos. A escola, com o sistema de disciplina, é uma forma de levar ao cidadão o convívio impositivo e não cooperativo. Já a mediação, este sim, é o primeiro ordenamento, quando não há uma grande complexidade social. E neste sistema todas as pessoas são co-responsáveis pelo que acontece na vida social. E no sistema ocidental, perdemos essa capacidade. Ao contrário, individualizamos. No sistema que adotamos chegamos a uma conclusão sempre: quem é o culpado disso? Existe o dilema: se ele é culpado, sou inocente. Então em nossa vizinhança não tenho nada a ver com a violência do bairro, por exemplo. A proposta da mediação é diferente: sou co-responsável em tudo o que acontece. Ou seja, pode existir, sim, um autor material do fato, mas ele não é o único responsável. Em síntese: o sistema ocidental propõe o sistema de identificação dos culpados. Já a mediação assume a co-responsabilidade.
DM – Não seria assumir que a Justiça do Estado não resolve os problemas? Daí as cortes de arbitragem…
Juan Carlos Vezzulla – Esta ideia de uma privatização da Justiça, que é falsa, é mais do mesmo. É ruim o modelo impositivo de qualquer forma. As pessoas não crescem nem evoluem neste sistema. Se você cria seu filho sempre dependendo de você, ele nunca vai desenvolver sua capacidade de pensar por si mesmo, de assumir responsabilidades. E isso o governo faz para nos sentirmos dependentes e incapazes. O Estado nunca deixa que as pessoas resolvam, não se engane.
DM – Esta ideia teria uma convergência com a noção de democracia participativa?
Juan Carlos Vezzulla–Exatamente, pois propõe a complementação da sociedade civil pelo estado. Não o inverso. Ok. Existem coisas que somente podem ser trabalhadas pela capacidade impositiva. Exemplo: a má fé só pode ser trabalhada pelo juiz. Mas as coisas cotidianas podem ser trabalhadas pelas próprias pessoas, como grande parte dos conflitos de vizinhança, de família, de sociedades, de contratos…
DM – A mediação então exige um profissional múltiplo?
Juan Carlos Vezzulla–A mediação propõe uma multidisciplinaridade que quebra os conceitos tradicionais de ciência moderna. Estamos numa ciência, de certa forma, pós-moderna. Mas o mediador não sabe de direito, de psicologia, dessas coisas. Quem sabe é o participante. Ele que sabe da sua vida. O mediador sabe como fazer para que ele escute a si mesmo, escute o outro e eles possam dialogar.
DM–O mediador é um facilitador?
Juan Carlos Vezzulla–Ele não realiza uma intervenção. Ele ocupa espaço para promover a fala entre eles, os participantes. Mas não age como facilitador. A questão é que ao contarem para o mediador, que não sabe nada, os participantes se escutam entre si.
DM – Esse profissional age de forma imparcial?
Juan Carlos Vezzulla–Esse medidor se despe de si mesmo, de crenças, de moral, de valores, para assumir uma imparcialidade comprometida. O mediador compreende algo seu e algo do outro. Os dois têm razão.
DM – É possível mediar casos de violência, de um estupro, por exemplo?
Juan Carlos Vezzulla–A questão está nas necessidades e raízes desta violência. É possível. No agressor, a mediação procura revelar a tomada de consciência dos atos. E na vítima, a questão de desvitimizá-la para poder superar esta situação. A mediação trabalha a pessoa integralmente, emoções, sua vida. Digamos que quem passa por um processo de mediação incorpora este modelo de dialogar sensível, respeitoso, escutando atentamente um ao outro.
DM – Em uma simples discussão de sala de aula é possível aplicar a mediação entre crianças?
Juan Carlos Vezzulla–A consciência dos próprios atos acontece já nas escolas, onde é possível aprender sobre respeito, relacionamento… Isso vai se trabalhando e os próprios alunos podem escolher o mediador entre pares, quer dizer entre eles. Então uma criança tem um problema com uma colega? É possível escolher uma pessoa de mesma idade como mediadora, apresentar o que aconteceu, e assim reiteram, se explicam. Eles acabam por se sensibilizar, vão recebendo o ponto de vista do outro e integrando.
DM – Então a mediação pode ser aproveitada até mesmo nas empresas.
Juan Carlos Vezzulla–A mediação serve a sociedade, para as pessoas físicas e jurídicas. Um dos elementos mais perturbadores da sociedade ocidental é a mágica das pessoas que não existem, que são as pessoas jurídicas. Damos identidade como se fossem reais. Essa identidade atende a fins funcionais e econômicos. Na verdade, são pessoas por trás de empresas.
DM – Mas é possível medir a mediação?
Juan Carlos Vezzulla–A mediação não se mede. Não é por aí que se analisa. A mediação é um implemento da democracia participativa. Não acredito muito na mediação do Judiciário, por exemplo, esta que mede quantos acordos foram feitos. São coisas diferentes.