Cotidiano

Rainha do mar e das festas de ano novo, Iemanjá é cultuada nas artes, na moda e na decoração

Redação DM

Publicado em 27 de dezembro de 2015 às 04:05 | Atualizado há 10 anos

RIO – Era janeiro, auge do verão carioca, quando um incêndio destruiu 370 lojas do Mercadão de Madureira, em 2001. A equipe de bombeiros demorou 14 horas para apagar o fogo. Prejuízo: 80% dos comerciantes perderam o estoque e 20 mil funcionários ficaram desempregados. Era outubro, auge da primavera carioca, quando uma reforma em tempo recorde fez o cenário ressurgir das cinzas, em 2002. Recompensa: cara de shopping, com ar-condicionado e escada rolante. Para retribuir os esforços pela recuperação, Hélio Sillman, gerente da loja Mundo dos Orixás, resolveu fazer uma comemoração. Parou, olhou em volta e escolheu a imagem que figurava em maior número no centro de comércio popular do Rio para “abençoar” a festança de agradecimento. A imagem era de Iemanjá.

— A princípio organizei uma lavagem das escadas para trazer axé, mas os lojistas se animaram para uma celebração maior. Aí surgiu a ideia de uma carreata para levar Iemanjá até o mar com os nossos votos — conta Sillman, 27 anos de serviços prestados ao Mercadão.

A carreata tímida virou um cortejo vultoso que parte de Madureira rumo a Copacabana já há 13 anos. Entrou para o calendário oficial da Riotur, arrasta cinco mil pessoas e custa R$ 60 mil (dinheiro da prefeitura e de patrocinadores). Nele, uma escultura de Iemanjá com dois metros de altura figura no alto de um caminhão, como num carro alegórico. Nesta terça-feira é dia de cortejo. Dentro do barco de madeira onde é posicionada a imagem, seguem pedidos e oferendas, como perfumes, joias, flores (palmas e rosas brancas) e comidas (peixe branco e canjica). Nas areias, depois de um ritual, a Iemanjá de Madureira é entregue às águas da Princesinha do Mar — além de “rainha do mar’’, o orixá é uma espécie de mãe no candomblé e na umbanda, o que explica sua representação sempre com os braços abertos.

— Isso tudo transcende religião. Independentemente das crenças, as pessoas pedem proteção a ela — observa Pedro Silva, presidente da Associação Comercial do Mercadão de Madureira.

Outra celebração acontece hoje, também em Copacabana: o 11º Barco de Iemanjá, ritual um pouco menor.

— A carreata é uma manifestação cultural. O barco é uma cerimônia religiosa — explica o babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), que organiza o evento em frente ao Posto 3.

Oficialmente, desde 1923 os festejos em torno de Iemanjá pelo Brasil acontecem em 2 de fevereiro — Salvador e Porto Alegre concentram os maiores. Reza a lenda que um grupo de pescadores fez uma promessa para que os peixes, à época em falta, voltassem ao mar, e o desejo teria sido realizado nesta data — em tempo: no catolicismo, 2 de fevereiro é Dia de Nossa Senhora dos Navegantes.

— Os adeptos do candomblé celebram Iemanjá em fevereiro; os umbandistas, no final do ano. Várias das nossas tradições de ano novo são heranças da umbanda. Só no Brasil as pessoas passam o réveillon de branco. Jogar flores no mar, estourar champanhe e pular sete ondas são alguns destes costumes — ressalta Ivanir.

No Rio, palco de um dos maiores réveillons do planeta, véspera de ano novo é tempo de glória para Iemanjá. Uma das muitas fábricas de imagens da cidade chega a produzir, entre outubro e fevereiro, 15 mil estátuas.

Há 16 anos, uma turma de frequentadores do Arpoador, entre eles o artista plástico Ernesto Neto, o consultor de carioquice William Vorhees e o músico João Nabuco, deposita uma imagem num barquinho e faz uma comemoração “pagã” para saudar Iemanjá na noite de 31 de dezembro.

— A imagem nos protege a noite inteira e é levada ao mar de manhã — conta Neto.

Mas Iemanjá anda navegando também em outras praias, da moda à decoração. O arquiteto Marcelo Rosenbaum lançou uma louça azul e branca. Já a designer Camila Campos montou um altar em casa.

— Tenho imagens católicas, budistas… E a rainha das águas não poderia faltar!

Beto Neves, da grife Complexo B, criou uma coleção de camisetas com a estampa do orixá:

— Fui a uma festa em Salvador e fiquei encantado. Voltei com uma tatuagem no braço e a ideia de trazê-la para as passarelas.

Para o stylist Felipe Veloso, Iemanjá combina com o estilo praiano do carioca:

— É uma imagem simpática às pessoas, e isso rompe a barreira da religião. É interessante essa mistura de axé com o nosso lifestyle.

A música não só dita o tom das comemorações em torno de Iemanjá como ecoa sua simbólica figura nos versos de nomes ilustres como Dorival Caymmi (“Dia dois de fevereiro/ Dia de festa no mar/ Eu quero ser o primeiro/ A saudar Iemanjá”) e Maria Bethânia (“A Rainha do Mar anda de mãos dadas comigo/ Me ensina o baile das ondas/ E canta, canta pra mim”). Clara Nunes e depois Marisa Monte ajudaram a eternizar “A lenda das sereias, rainhas do mar’’, samba do Império Serrano no carnaval de 1976 (“Ela mora no mar/ Ela brinca na areia/ No balanço das ondas/ A paz ela semeia”).

— Foi um ano de muito peixe na Avenida — lembra Tia Maria, uma das fundadoras da escola.

Marisa Monte, aliás, foi a personagem escolhida por Daniela Thomas, Cao Hamburger e Jum Nakao para representar Iemanjá nos Jogos Olímpicos de Londres em 2012. Na versão assinada pelo trio, a cantora usou uma imensa saia alegórica composta por guarda-chuvas nas cores azul e branco.

— Quando você faz uma pesquisa para produzir a imagem do seu país lá fora surgem muitos símbolos. Iemanjá é o samba do crioulo doido, são mil referências. Mas é uma personagem feminina que comanda devoção independentemente do sexo e de suas crenças — analisa Daniela.

Na fotografia, Iemanjá também tem seus devotos e empresta inspiração para Alex Ferro e Mirian Fichter, que assinam algumas das imagens desta reportagem. Mirian, que retrata festejos no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul desde 1990, está, inclusive, produzindo um documentário sobre o tema:

— Fiquei apaixonada pela cultura, beleza e estética dessas celebrações.

Alex foca em Iemanjá à carioca. Sua série “Rolezinho de Iemanjá”, clicada durante uma carreata, foi exibida nas paredes da Galeria Pretos Novos, na Gamboa, em 2012. Em setembro, outro trabalho, apresentado numa galeria em Nova York, foi registrado no terreiro Asè Atará Magbá Iyá Omindarewá, em Santa Cruz da Serra.

A popularidade de Iemanjá é o ganha-pão de Flávio de Assis, dono de uma fábrica de imagens na Zona Oeste do Rio. Antes de chegarem às prateleiras das lojas (“até da Europa já recebi encomendas”, ele conta), as esculturas de gesso passam por um processo artesanal de confecção. Primeiro, são moldadas em fôrmas de borracha em oito tamanhos diferentes, depois, lixadas e pintadas.

— De outubro a fevereiro, produzo três mil imagens de Iemanjá por mês. Ela e São Jorge são um sucesso — relata Flávio.

No seu galpão, elas “vestem’’ uma roupa esvoaçante azul, têm a pele branca e o cabelo marrom. Esta, porém, não é a imagem “oficial” de Iemanjá, que também é encontrada com vestido branco, negra, loura, com rabo de sereia, deitada numa concha…

— É curioso como surgem representações do orixás, que não têm referências físicas. Mas a plasticidade é interessante — diz a pesquisadora Christina Vital, do Instituto de Estudos da Religião (ISER).

Branca ou negra, de vestido azul ou cru, Iemanjá é celebrada o ano inteiro nos terreiros. No Rio, eles somam 847, segundo a pesquisa “Presença do axé: mapeando terreiros no Rio de Janeiro”, publicada no ano passado pela PUC-Rio.

— Cada terreiro é um pequeno reino em que seu dirigente celebra os orixás da maneira que lhe convém — reforça o antropólogo Zé Renato Baptista.

Com vestidos rodados e rendados, ostentando colares de contas e panos na cabeça, as devotas de Iemanjá cantam e dançam nas cerimônias. No Asè Atará Magbá Iyá Omindarewá, a festa é neste mês e começa às 6h com o som dos atabaques. No Ile Omiojuaro, em Nova Iguaçu, é comemorada em junho. Mas, no dia 31, antes da meia-noite, Mãe Beata de Iemanjá joga búzios para prever como será o amanhã.

— Como é que vou fazer uma previsão antes de o ano nascer? — desabona previsões feitas meses antes da virada.

Seja como for, especulações dão conta de que 2016 será regido por Iemanjá… Odoyá.

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