Um juiz na contramão da Lava Jato
Diário da Manhã
Publicado em 15 de janeiro de 2017 às 00:06 | Atualizado há 8 anos
Empreiteiras não devem ser obrigadas a devolver aos cofres públicos dinheiro gasto com propina quando a quantia saiu das próprias empresas, e não do caixa da administração pública. Este é o entendimento do juiz federal Friedmann Anderson Wendpap, da 1ª Vara Federal de Curitiba, ao rejeitar pedido do Ministério Público Federal, em ação de improbidade administrativa, contra executivos da Galvão Engenharia, a própria construtora (como pessoa jurídica) e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Os réus desta ação já respondem criminalmente, em processo conduzido pelo célebre juiz Sérgio Moro, episódio conhecido como Operação Lava Jato.
A notícia foi publicada ontem no site Conjur – Consultor Jurídico, especializado em questões do judiciário brasileiro, voltado para um público restrito, o dos profissionais do Direito. O site publicou na íntegra, em PDF, a quilométrica decisão do magistrado, rica em citações doutrinárias e jurisprudenciais.
Procuradores da República queriam que os réus devolvessem R$ 75,6 milhões aos “cofres públicos”, melhor dizendo, à Petrobrás, mas o juiz acolheu tal pretensão, pela “singela razão” de que “o que a Petrobras pagou, em verdade, foi o preço do contrato e em razão de um serviço que, em tese, foi realizado a contento. Logo, o pagamento da propina não implica, ipso facto, dano ao erário, mas desvantagem, em tese, às próprias contratadas”.
O juiz põe aqui, em evidência, um fato há muito omitido dolosamente pela grande imprensa, com claros objetivos políticos: o dinheiro para pagar propina a políticos e diretores da Petrobras nunca saíram do caixa da estatal, mas dos cofres das empresas contratantes de serviços e de fornecimento. Não há, até agora, notícia de que tais contratos foram descumpridos. Os serviços foram realizados e os bens fornecidos.
O juiz entende que, mesmo considerando o relato de que a propina baseava-se em uma parte do contrato, de pelo menos 1%, o raciocínio, diz ele, “é sofismático” por dois motivos: “Em primeiro lugar, porque é possível também que as empresas tenham pagado esse valor a partir da margem de lucro ínsita à álea do negócio.” Além disso, afirma, os atos ímprobos seriam consequência, na verdade, do superfaturamento dos contratos — tema tratado em outra ação conexa, ajuizada pela União.
Trocando em miúdos: as propinas saíram do lucro das empresas, que é a remuneração pelo risco envolvendo o negócio. Em suma: prestadores de serviços a órgãos públicos não são instituições filantrópicas, visam lucro. A questão, porém, é se este lucro, “ínsito à álea do negócio”, estaria dentro do razoável e lícito, ou seria um ganho exorbitante gerado pelo superfaturamento dos contratos?
Como o próprio juiz afirma, o tema “superfaturamento” é tratado em outra ação ajuizada pela União. Não basta alegar que este ou aquele contrato foi “superfaturado”. É preciso provar o superfaturamento. A única forma de fazer prova disso é passar todos os contratos da Petrobrás por uma perícia contábil. No juízo criminal, isto é, no âmbito da Lava Jato, ninguém jamais requereu, e nem Moro determinou de ofício, que os contratos fossem auditados. Mas o superfaturamento é admitido por todos, e pela grande imprensa em particular, como algo dado, heurístico, evidente Por si mesmo, sendo desnecessário fazer prova disso.
Lava jato no cível
Wendpap é um dos juízes com competência para julgar ações de improbidade ligadas à operação “lava jato” . No Brasil, improbidade administrativa é ilícito de natureza cível, a despeito de nele conter todos os elementos constitutivos do conceito de “crime”. Não sendo, tecnicamente falando, um crime, a improbidade administrativa é julgada no juízo Cível. Não ficam, portanto, nas mãos do juiz Sérgio Moro.
A decisão na prática, acaba esvazia o processo, pois rejeita mais duas pretensões do Ministério Público: nega pedido de dano moral coletivo e rejeita acusação contra a Galvão Participações, sócia-controladora da Galvão Engenharia, por falta de provas de que a companhia-mãe conhecia as irregularidades.
O MPF queria condenar os réus a pagar R$ 756,4 milhões ao Fundo Federal de Defesa de Direitos Difusos, a título de indenização por “dano moral coletivo”, como pena pelo “absoluto menosprezo à coisa pública e aos valores republicanos”. O valor equivale a dez vezes o dinheiro da propina estimado pelo próprio órgão. É uma pretensão tipicamente temerária. Não prova, aliás sequer demonstra, que a coletividade sofreu “dano moral” e que a causa eficiente, necessária, deste dano teria sido a atitude de “absoluto menosprezo pela coisa pública e os valores republicanos”.
Segundo o juiz, as ações de improbidade não podem incluir esse tipo de pedido. Deveria restringir-se às sanções fixadas pela Lei 8.429/1992, que dispõe sobre atos de improbidade administrativas a punições cabíveis. Do mesmo modo, ele impede que a Petrobras aproveite o processo para também pedir indenização.
O MPF afirmava ainda que, “para evitar subterfúgios e prevenir fraudes à aplicação”, todas as empresas ligadas à Galvão Participações no mesmo ramo da Galvão Engenharia deveriam ser proibidas de contratar com o poder público ou de receber incentivos fiscais. Queria ainda que a medida valesse inclusive para empresas que incorporassem a atividade da construtora.
A medida seria cabível se houvesse indícios de abuso de personalidade (desvio de finalidade ou confusão patrimonial). “Não há como presumir, de antemão, que qualquer operação societária que venha a ser realizada pela Galvão Engenharia consista num ato ilícito destinado a burlar as sanções aplicáveis com base na Lei 8.429/1992”, como perda da função pública, suspensão de direitos políticos e proibição de novos contratos.
Pela primeira vez uma autoridade judiciária deixa de punir empresas em virtude das estripulias de seus gestores. Uma das críticas mais veementes que vêm sendo feitas à Lava Jato é que, a operação vem destruindo a engenharia brasileira, quebrando empresas, promovendo o desemprego e levando à paralisação de importantes obras públicas, com prejuízos para o país. É quase consenso entre os economistas brasileiros que os prejuízos econômicos causados pelas decisões de Moro, de estender às empresas a punição aos seus gestores, é muitas vezes superiores aos prejuízos supostamente causados à Petrobrás. Supostamente causados, sim, porque até agora não foram periciados os contratos para se estabelecer, com absoluta certeza, se houve mesmo superfaturamento e em que proporção.
Segundo Wendpap, acolher a pretensão do MPF daria “à autoridade administrativa uma carta branca para atribuir o caráter fraudulento e embargar todas operações societárias realizadas pelas sociedades acusadas, sem que as novas empresas sequer tenham participado do contraditório em ação judicial”.
Ele ainda aponta a existência de seis “pontos controvertidos” na petição inicial, que ainda podem ser apresentadas nas próximas fases. Entre as perguntas listadas, estão as seguintes: a Galvão Engenharia teria composto o cartel de empresas destinado a participar das licitações de grandes obras da Petrobras? A partir de que ano? Como teria ocorrido eventual pagamento dessa vantagem indevida, por contratos de consultoria e/ou por dinheiro em espécie?
O MPF apresentou cinco ações de improbidade ligadas à Lava Jato em fevereiro de 2015. Quase dois anos depois, nenhuma teve sentença. Uma dúvida sobre a competência chegou a paralisar o andamento, como revelou a revista eletrônica Consultor Jurídico. No ano passado, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o julgamento não precisa ficar apenas com um juiz, pois os processos apresentam fatos distintos sem conexão direta.
Não há como presumir, de antemão, que qualquer operação societária que venha a ser realizada pela Galvão Engenharia consista num ato ilícito destinado a burlar as sanções aplicáveis com base na Lei 8.429/1992”
Friedmann Anderson Wendpap, juiz federal
Em primeiro lugar, porque é possível também que as empresas tenham pagado esse valor a partir da margem de lucro ínsita à álea do negócio”
Friedmann Anderson Wendpap