Cotidiano

Viva o “jeca world”!

Redação DM

Publicado em 22 de dezembro de 2015 às 23:00 | Atualizado há 9 anos

“Será possível que cidade grande… Só assanhamento? Não se tem amor?”

(Raul Seixas)

 

A roça é um lugar, mas é também, e principalmente, um estilo de vida! Viver na roça é viver em um “tempo lento” como nos conta, o filósofo francês Henri Lefebvre. Não é só a tranquilidade, o pulsar da vida natural, os ventos, os bichos, os jeitos e trejeitos dos seus habitantes, mas é, sobretudo, o tempo. Não estou a tratar do tempo cronológico, estou falando do tempo como essência, espírito e tendência.

Tragicamente, o processo de modernização do Brasil, desgraçadamente confundido com o próprio processo de urbanização, tratou de conceber a vida no campo, repleta, evidentemente, de limites, contradições e lapsos, como vida atrasada, arcaica e carente de sentido de futuro.

Lástima! Embarcamos nessa “barca furada” e nossa modernidade trôpega, enviesada, classista e infeliz tratou de, primeiro, promover a maior diáspora do planeta. Aliás, nada, no mundo, se compara com o quase bíblico movimento populacional que empurrou quase cem milhões de brasileiros em menos de trinta anos do campo para o “galardão” das cidades.

Vida urbana? Qual nada… Vida suburbana, periférica, marginal, odienta e segregada onde tal segregação se intensifica, sobretudo, com a falência e o colapso dos serviços públicos disponibilizados, com os burgos modernos, os mesmos condomínios fechados, sejam verticais ou horizontais e o vigente e assassino estado policial que nós, os “modernos” construímos contra nós mesmos.

Não existem outros termos: ferramo-nos feio! Muito melhor o lombrigueiro, a doença de chagas e a insuperável metáfora do “jeca tatu” sempre “preguiçoso e encostado”. A cidade “moderna”, colonizada ou neocolonizada multiplicou essas contradições, verdadeiras miudezas e ninharias convivais, por mil!

Os filhos, netos ou bisnetos do “mundo jeca” são assassinados rotineiramente pela polícia, pela política ou pelo crime organizado; são “mulas” do narcotráfico, alvos preferenciais da “PM das epidermes” e que eliminam nada, nada, pelo menos, trinta mil destes “malditos bandidos negros” ao ano… Também, quem mandou ser “preto”?

As filhas do “jeca world” se tornaram assalariadas, suburbanas sem qualquer sentido de real futuro ou então, o óbvio: prostitutas de miúdas remunerações! Simples assim!

A cidade surgida da diáspora; do movimento tectônico e continental de milhões e mais milhões de brasileiros que cegamente marcharam às incertezas da vida suburbana atual e contemporânea – o mundo urbano pra valer é de fato, para meia dúzia de gatos pingados, brancos e bem nascidos – é a cidade da morte, da privação, da infame vida salarial, da subsistência mais torpe e elementar que se possa imaginar e do ocaso ecológico.

Sem volta? Sim, pelo menos, por enquanto, sem volta, afinal, corporações, incorporadoras, bancos, corretoras, seguradoras, imobiliárias mais a ampla teia de produtos/serviços afeita com a turbo-especulação imobiliária tratam de manter e reproduzir o “status quo” do marginalismo rentista e vigoroso da apropriação da cidade.

Contudo, não nos enganemos, a galáxia especulativa não visa somente ganhar e mais ganhar a partir de ciclos rápidos e curtos de inversões de capital onde o investimento “1” implica, para o próximo ponto da crista da onda, um rotundo retorno “1000”. Nada disso, afinal, essa sinistra lógica de reprodução do capital já está posta e consolidada… Também com um estado capado de regulações como o que temos… Já viram no que dá!

O caráter, mais danoso e trágico de todo esse configurado é a retomada ou a reconstrução da diáspora ou a refeitura social e econômica do mesmo movimento de virada demográfica apetecido nos sanguíneos anos de 1960/1970 e que nos converteu em um país “urbano”.

Interessa reinaugurar a década de 1970; seus instantes, ordenamentos e mesmo a força socioeconômica que catapultou a “subnação” brasileira, o “sub-Brasil”, espécie de “judeus tropicais” ainda hoje transitando vacilante e incerto nos intestinos da grande cidade, da metrópole, para o instável, o imprevisível e periclitante deste urbano apropriado, sem-governo, regras públicas e sociais e horizonte coletivo, condição, aliás, essencial para a fictícia valorização de imóveis, dos seus preços, dividendos e aluguéis.

Como bem nos dirá o economista José Eli da Veiga: “Não somos tão urbanos assim.”

 

(Ângelo Cavalcante, economista, cientista político, doutorando em Geografia Humana (USP) e professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara)

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