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“Estou torcendo para que dê polêmica e denunciem o filme”

Marcus Vinícius Beck

Renato Dias

Maior nome do cinema de animação brasileiro, o cineasta Otto Guerra, 63, se prepara para lançar nas telonas seu mais novo filme. O longa-metragem “A Cidade dos Piratas” - premiado em agosto deste ano no festival de Gramado - foi inspirado nas histórias em quadrinhos “Piratas do Tietê”, da cartunista Laerte Coutinho, e perpassa por conceitos idealizados pela artista com sua vida pessoal. Durante a realização do longa, Guerra se deparou com a resistência de Laerte em aceitar seus próprios personagens.

Foi aí, então, que o diretor teve uma ideia: por que não mesclar realidade e ficção de forma um tanto quanto caótica? Não poderia haver escolha narrativa mais assertiva. Aos 57 anos, vários deles dedicado à transgressão pela via do humor, Laerte resolveu se assumir como mulher transgênero e virou personagem do documentário “Laerte-se”, obra dirigida pelas documentaristas Lígia Barbosa da Silva e Eliane Brum, em 2017.

Em entrevista exclusiva ao Diário da Manhã concedida no último sábado (28) durante o Festival de Cinema Brasileiro de Goiânia (Festcine), Guerra traçou, entre outras coisas, o cenário do audiovisual após a extinção do Ministério da Cultura (Minc) pelo governo de Jair Bolsonaro. Além disso, comentou a relevância do longa cult “Wood & Stock - Sexo, orégano & rock´n´roll, lançado em 2006, com inspiração na obra do cartunista paulistano Angeli.

Confira os principais trechos da entrevista:

Diário da Manhã – No dia 31 de outubro estreia nos cinemas sua nova produção cinematográfica. Qual é o título do novo trabalho?

Otto Guerra O nome do filme é “A Cidade dos Piratas” e é baseado nos quadrinhos da cartunista Laerte, nos Piratas do Tietê, dos anos de 1980. Trouxemos aquela temática para os tempos atuais. A autora, que era o autor, renega os personagens. Acha que eles são múmias. Estávamos com tudo pronto para fazer o filme e aí tivemos que mudar. Os personagens são ótimos, mas naquele contexto dos anos 80. Concordo com Laerte.

DM – Aquela onda de chargistas e da produção humorística da década de 80 era carregada de misoginia, sexismo, racismo, homofobia, não?

Otto – O trabalho dos três amigos, “Chiclete com Banana”, que é onde conheci a Laerte, era crítico de tudo e todos. Era uma metralhadora giratória, inclusive falavam mal deles mesmos. Eles não atacavam as minorias. Suas obras são reconhecidas não só no Brasil, mas no mundo. São revolucionários.

DM – ‘A Cidade dos Piratas’ tem quanto tempo de duração?

Otto – Ficou com 80 minutos.

DM – Estreia no Brasil?

Otto – Sim, dia 31 de outubro.

DM – Quem faz a distribuição?

Otto – A produção é um negócio complicado, mas acho que a distribuição é mais ainda, porque tem todos os blackbusters. Tem muito filme brasileiro. Então, conseguir lançar nos cinemas é uma baita produção.

DM – A produção cinematográfica brasileira multiplicou nos últimos anos, sob Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Houve um retrocesso com Michel Temer e, agora, com Jair Bolsonaro. Apesar disso, 80% da produção nacional seria vista por apenas 2 mil pessoas. Ou seja, os blackbusters e a comédia atingem um grande público no Brasil. Qual é a sua leitura?

Otto – Da questão do público?

DM – Sim. O cinema de qualidade produzido no Brasil atinge um número pequeno de pessoas.

Otto – Depende, né? “Bacurau” está em cartaz e conta com meio milhão de espectadores. “Turma da Mônica Laços 2”, 2,1 milhões. Há filmes que rendem muito público, mesmo nos Estados Unidos. Lá, quando você vai lançar algum blackbuster, eles colocam junto os que não vendem. É difícil conseguir público para cinema, não só no Brasil. Além disso, temos uma estrutura que privilegia os filmes que têm mais grana para colocar na mídia. No Brasil há alguns furos, como não ter dinheiro para distribuição. Um filme como “Os Vingadores”, por exemplo, gasta mais em mídia do que em sua própria produção. Então, todo mundo fica sabendo que está passando “Os Vingadores”, mas ninguém está nem aí para o nosso filme, porque não temos grana para pagar mídia. É um esquema bem cruel, não é tão simples assim.

DM – Seria uma espécie de censura econômica?

Otto – É uma coisa que surgiu quando os americanos começaram a fazer cinema. Era excelente o negócio, gosto muito dos filmes americanos. O presidente da época, na década de 20, dizia algo do tipo ‘onde a gente quiser chegar, a gente chega’. Eles colocam grana até hoje no cinema comercial, pois é uma forma de dominarem o mundo. Não só nós, mas a Europa toda. O mundo ocidental todo é dominado pelo cinema americano. É uma máquina imensa. Por exemplo, “Enrolados”, filme da Disney, gastou US$ 500 milhões. E você o vê duas vezes. US$ 500 milhões foi o orçamento total do cinema brasileiro no ano passado. Não. US$ 500 milhões é o dobro de todo o orçamento do nosso cinema.

DM – Cinco filmes já na sua carreira?

Otto – Sim. Cinco longas.

DM – Quais são?

Otto – Ah, uns 15 curtas, 600 comerciais e sou vagabundo? Filhas das putas...

DM – Os principais longas?

Otto – O primeiro foi “Os Trapalhões no Rabo dos Cometas”, com Maurício de Souza, em 1986. Depois fiz “Rocky & Hudson – Os Caubóis Gays”, lançado em 1995. Foi uma produção que gastei o dinheiro da propaganda. Nos anos 80, pegava grana da propaganda e colocava nos filmes. Então, fazia cinema de animação quando ninguém fazia isso.

DM – Para completar, qual o título dos filmes?

Otto – “Rock & Hudson” foi o segundo longa; terceiro, “Wood & Stock”; “Até que a Sbórnia nos Separe” foi o quarto, e agora a gente terminou “A Cidade dos Piratas”.

DM – Neste contexto de ascensão e consolidação do conservadorismo, qual é a importância do longa “A Cidade dos Piratas”, baseado nos quadrinhos da Laerte?

Otto – Estou torcendo para que dê polêmica e denunciem o filme. A gente pega pesado em algumas questões. A Laerte criou o termo “ditadura gay”.

DM – O filme da Laerte seria uma ameaça à moral e aos bons costumes?

Otto – O Brasil e o mundo avançaram muito na questão dos costumes, mas existe essa grande massa conservadora que viu no Bolsonaro a possibilidade de falar suas merdas.

DM – É possível dizer que hoje há fascismo no Brasil?

Otto – Não. Minha família é toda Bolsonaro, mas ela não sabe o que significa fascismo. Acho que o brasileiro é mole, não houve alguma guerra aqui. Só passamos vergonha. Viajo muito pelo mundo e estávamos com a moral lá em cima. Saímos do nada para virarmos uma potência mundial. O que aconteceu? As grandes corporações americanas, que têm grana, compraram o juiz e o STF, e deram um golpe de Estado.

DM – Daria um bom filme essa história do Rodrigo Janot dar um tiro em sessão no Supremo Tribunal Federal no ministro Gilmar Mendes?

Otto – Pena que ele não deu, né? (risos).

DM – Como surgiu a ideia de fazer uma obra baseada nos quadrinhos da Laerte?

Otto – O cartunista Adão Iturrusgarai, de Porto Alegre, foi morar em São Paulo e virou o quarto amigo. Fiquei amigo e já admirava o trabalho deles, essa pegada underground.

DM – Quem faz bom cinema hoje no Brasil?

Otto – Recomendo assistir ao longa “Bacurau”. É um pastiche, filme lado B, né? Gosto muito do “Menino e o Mundo”, uma animação que foi indicada ao Oscar há três anos.

DM – Nenhum filme político?

Otto – Gostei do “Democracia em Vertigem”.

DM – Qual é o futuro do cinema?

Otto – O mercado do audiovisual está em uma mudança radical. Desfaleceu tudo, ninguém sabe o vai acontecer, a internet é uma bruxa má. A internet veio destruir tudo. A indústria fonográfica não é como era. Virá tudo de outra forma e muito melhor.

DM – Fazer cinema é um ato de resistência?

Otto – A cultura é, né? O problema é que, no Brasil, com o surgimento da televisão, o cinema entrou em conflito. O cinema aqui veio casado com o rádio, que gerou a televisão brasileira.

DM – Como você vê a indústria do audiovisual no Brasil?

Otto – A indústria do audiovisual no Brasil é a Rede Globo, que produz algo como cinco longas-metragens por dia. É uma baita indústria. A gente tem uma indústria, mas é um oligopólio. Trabalhei na Globo um tempo e eles têm muita grana. Mercado do audiovisual tem novas empresas, como Amazon, Tuner, etc. Globo é uma anã perto da Netflix, que é uma anã perto da Turner.

DM – O cinema é a maior indústria de entretenimento do mundo? Maior que o futebol?

Otto – Maior, é claro. Os jogos e os games já ultrapassaram o cinema há muito tempo. Poderia fazer games pra ganhar dinheiro, mas não faço.

DM – Qual é a sua maior referência estética?

Otto Stanley Kubrick. Acho foda!

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