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Embriague-se de vinho, virtude ou poesia

“Bebe, que tudo é líquido e embriaga, e a vida morre enquanto o ser revive”, atestou Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, o poeta português que viu no ato de encher e esvaziar taças de vinho a metáfora etílica adequada para expressar o sentimento dos efêmeros nos tempos modernos. Pessoa acenara, ainda em 1933, para aquilo que o filósofo polonês Zygmunt Bauman definiria anos mais tarde como “modernidade líquida”. À embriaguez irresoluta as quais somos submetidos no cotidiano intempestivo do capital, só resta molhar a palavra e “buscar na linha fria do horizonte, a árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte – os beijos merecidos da Verdade”. 

Certos vinhos merecem serem brindados com a reverência à qual dedicamos o ato de degustar os versos de Pessoa. É o êxtase da mais solene poética bêbada, a única verdadeira obra de arte que pode ser sorvida com bebericos delicados - ou nem tão delicados assim. Passaram-se mais de 20 séculos e a birita símbolo do mito de Dionísio – o deus grego da embriaguez, do teatro, do sexo e dos rituais caóticos – continua sendo apreciada como fazia a turma de Plantão nas sessões dialéticas que não raro findavam na sonífera síntese da anestesia enóloga. Se nossos ancestrais lubrificavam a palavra com o pileque da mitologia, trilhamos caminho parecido durante a pandemia de coronavírus.

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Fernando Pessoa percebia nas taças de vinho a metáfora da modernidade líquida - Foto: Divulgação

Capitaneadas pelos supermercados e pela web, as vendas de vinhos produzidos no Brasil aumentaram 12% entre janeiro e maio em comparação com o mesmo período do ano passado. “O e-commerce de vinhos no Brasil já era popular. Com o isolamento social e os bares fechados, as pessoas voltaram suas atenções para essa área”, analisa Nasser Najar, que se intitula como Sommelier do Povo. A pesquisa do Ideal Consulting, empresa que acompanha o mercado no País, foi concebida na esteira do consumo per capita: após uma década chegando próximo a 2 litros por ano, o Brasil bateu pela primeira vez essa marca em 2019.

Fã do estigma mitológico em torno da bebida imortalizada na literatura de Henry Miller e Anais Nin, a fotojornalista Júlia Lee confessa que não tem cacife financeiro para abrir a carteira e pagar mais de R$ 40 num rótulo. Em isolamento social na cidade do Rio de Janeiro, ela relata que procura beber em casa e paga normalmente até R$ 30 por uma garrafa. “Mas às vezes vou até a faixa dos 40, mais que isso já não é algo que eu posso pagar”, diz, rindo. Júlia acredita que bebericar algumas taças da birita dionisíaca lhe remete ao deus grego da embriaguez. “O ato de beber vinho me remete a Dionísio, ao povo cigano que me acompanha e estimula a conversa”, conta ela, que prefere o estilo rosado ao tinto.

Com os bares de portas abaixadas por causa da pandemia, os boêmios de plantão precisam lidar com um repertório um tanto restrito da botecagem. E sobra apenas uma opção para o ofício hedonista sem colocar os entes queridos em risco: labutar etilicamente no santo conforto do lar após findar os afazeres proletários. “Com certeza o consumo de vinho aumentou porque os bares estão fechados. Em minha visão, o vinho é uma bebida interessante de beber em casa, com refeições, além de ser um mercado que o brasileiro ainda tem muito para explorar e tem curiosidade”, reflete Najar. De fato, temos muito a aprender, mas como escolher um rótulo decente, Jesus Santíssimo?

Sommelier Nasser Najar diz que é um erro achar que vinhos mais baratos em mercados - Foto: Acervo Pessoal

“Apesar de todo mundo pensar que nos supermercados estão os vinhos mais baratos, isso é um erro. As lojas especializadas sempre vão comprar os vinhos de qualidade maior, menor preço, melhor relação custo/benefício, além de armazenagem e estocagem correta, um cuidado maior para o produto chegar perfeito na mesa do consumidor”, explica Najar. A dica, continua ele, é simples: procure uma adega para comprar vinhos, até mesmo os rótulos mais baratos. “Não se iluda com rótulos lindos e garrafas robustas, muito disso é marketing, o que a garrafa apresenta de bonita, às vezes lhe falta de conteúdo e, por fim, não acredite em promoções mirabolantes de vinhos”.

Desafio

O consumo de vinho brasileiro aumentou, mas ainda há desafios a serem enfrentados. “Talvez muitos leitores irão concordar que o povo brasileiro tem um típico 'complexo de vira-lata'. Quem fala que o nosso produto é ruim, ou simplesmente torce a cara quando alguém sugere um produto nacional, de duas uma: ou é preconceito ou é pura ignorância”, define o sommelier Nasser Najar. Apesar de os vizinhos Chile e Argentina terem uma escola mais antiga de vinho e uma população que o consome mais, o Brasil - no quesito qualidade - não fica atrás. “Brasil é mundialmente renomado por seus espumantes que batem de frente com os champagnes franceses e as Cavas espanholas”.

Graduado na International Sommelier Guild (ISG), Najar diz ainda que o Brasil oferece boas condições de viticultura, com tecnologia e conhecimentos apropriados para a confecção de bons vinhos. Mas, mesmo assim, ele sentencia, o brasileiro insiste em consumir mais os chilenos e argentinos, que – embora sejam os grandes produtores da América do Sul – também soltam no mercado produtos “de péssima qualidade”. “O que atrapalha o Brasil é como o vinho é encarado aqui dentro pelo governo. Enquanto no resto do mundo ele é tido como alimento e parte da história cultural da humanidade, no Brasil ele é tratado como artigo de luxo, com altos impostos”, explica.

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Rio Grande do Sul é destaque na produção de vinhos nacionais - Foto: Reprodução

Sobre as localidades brasileiras que são referências na produção de vinhos, Najar destaca o Rio Grande do Sul: “É o estado que produz mais vinho e a principal região é a Serra Gaúcha onde fica o Vale dos Vinhedos, denominação de origem dos melhores vinhos nacionais. Mas também temos outras regiões dentro do Rio Grande do Sul, temos Santa Catarina, Sul de Minas e São Paulo, além do Vale do São Francisco na região que engloba Bahia com Pernambuco”. Além dos supermercados e e-commerces, o produto está em evidência em marketplaces. A Wine, por exemplo, consolidou sua presença na internet e deve chegar a Goiânia em breve. O vinho é a sabedoria engarrafada. Que me desculpe Vinícius de Moraes.

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