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Escritora observa Estados Unidos em clássico do jornalismo literário

Ela escondia-se em seus óculos escuros. Parecia alheia ao mundo, lugar estranho sobre o qual conseguiu captar as transformações que mudaram o curso da História, essa mesma que os acadêmicos citam como sendo com agá maiúsculo. Talvez pelo fato de não ter uma memória fotográfica não é muito dada a escrever ensaios que não lhe interessam: tudo o que batuca à máquina, necessariamente, reflete como se sente.

Joan Didion, jornalista de texto elegante sufocada pelos prazos das redações, é uma escritora brilhante. Nos anos 1960, junto com a turma revoltada com a camisa de força da imparcialidade jornalística liderada por Tom Wolfe, Gay Talese, Truman Capote e Norman Mailer, Didion resolveu seguir ao pé da letra aquela máxima defendida por Hunter S. Thompson que todo repórter precisa ter os olhos de Cartier-Bresson.

Francamente, ela está um degrauzinho além: evita falar com assessores de imprensa, não gosta de dar telefonemas (o que acharia das trocas de e-mail e zap, hoje?) e tampouco quer elencar as manhãs em que, na cama de algum hotel, tentou se esforçar a fazer ligações e aguardar que lhe pusessem na linha com o assistente do promotor público. Didion, em outras palavras, dispensa as aspas da burocracia.

“Rastejando Até Belém”, clássico do ensaísmo moderno que enfim foi lançado no Brasil pela editora Todavia, reúne 22 ensaios, reportagens e perfis escritos por Didion no desespero de pagar contas. “Eu estava mais doente do que nunca enquanto escrevia “Rastejando Até Belém”; a dor me mantinha acordada à noite, então por vinte, vinte e uma horas por dia, eu tomava água quente com gim para atenuar a dor e Dexedrine para atenuar o gim e escrevia o ensaio”, escreve ela, no prefácio da obra. Deu certo. 

Quando a imaginação e o sonho tomaram as ruas contra a caretice em Maio de 68, as livrarias norte-americanas recebiam os primeiros exemplares da obra que fez de Didion – até então romancista obscura – uma jornalista célebre, com passe livre e tudo o mais para ir e vir entre a patota do Novo Jornalismo: ela não tinha um emprego na Esquire, como Wolfe e Talese, nem escrevia na New Yorker, como Capote.

Mas escrevia bem, muito bem nas páginas do The Saturday Evening Post. E valeu-se, usando as próprias palavras da autora, de seu temperamento discreto e falta de articulação para entrevistar Jim Morrison, mítico e doidão vocalista do The Doors, reconstituir uma cena inusitada sob qualquer ângulo na qual uma mãe dá LSD para a filha de cinco ou enquanto batia um papo sobre política com a cantora Joan Baez.

Tudo isso, claro, numa prosa cristalina, bem-humorada, que ousa dizer como as coisas funcionam na dita “maior democracia do mundo”. Didion é um patrimônio do jornalismo que menospreza declarações e opta pelo aprofundamento dos fatos, quer dizer, a contribuição dela para o ofício de observar e narrar a realidade é monumental. Pena, porém, que tenha ficado tanto tempo sem ser publicada por aqui.

Se Didion se considera ruim em entrevistar pessoas, “Rastejando Até Belém” mostra que o jornalismo pode ser uma forma com recursos literários de reportar os fatos do cotidiano. A obra, dividida em três partes, sendo o desencontro entre ideias e realidade, o que acreditamos ser, como pessoas, lugares, famílias, etc e o que somos de verdade, explora a necessidade de seguir o fluxo de consciência nem sempre fáceis.

Definitivamente, com Joan Didion o jornalismo vira coisa de gente grande, e não de pessoas preocupadas em tecer constrangedores elogios públicos.

‘Rastejando Até Belém’

Autor: Joan Didion

Gênero: Ensaio

Editora: Todavia

Preço: R$ 69,90 (físico) e R$ 42,00 (e-book)

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