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Obra de Nelson Rodrigues ganha nova casa editorial

Nelson Rodrigues andava pelas ruas da Lapa com a barriga roncando antes de estrear o espetáculo “A Mulher Sem Pecado”, uma das obras-primas do escritor junto com “Vestido de Noiva” e “Perdoe-me Por Me Traíres”. A verdade é que, bem, ter a pretensão de vencer na vida batucando as teclas da civilização e segurando uma máquina de escrever não é das coisas inteligentes a se fazer. Pelo menos não no Brasil.

Nelson transitava com facilidade em temas distintos porque se revelava um operário das palavras encabulado em abordar questões espinhosas, porém essenciais à vida: o amor, a paixão, a falsa moral... Sua escrita movia-se, sempre com esses sentimentos na ponta do verbo, pelo drama de um Fla x Flu ou pela misericórdia de um homem prestes a morrer que dá um beijo na boca de outro homem. Imagine o escândalo...

Mas foi publicando folhetins na imprensa que o escritor encontrou seu métier. Em 112 capítulos que atraíram atenção de milhares de leitores, Nelson apresentou a personagem Engraçadinha (interpretada pela atriz Alessandra Negrini no seriado da Globo nos anos 1990) e imprimia nela seu olhar implacável, com as tensões do falso moralismo de uma sociedade orgulhosa em preservar comportamentos retrógrados.

O que, se voltarmos nossos olhos às críticas desses mesmos conservadores à obra dele, chega a ser um tanto curioso, pra não dizer engraçado: Nelson era reacionário, posicionando-se favorável ao golpe de 1964 e mudando de opinião apenas quando seu filho, Nelsinho, acabou preso pelos militares. Ele alimentava uma obsessão quanto à Passeata dos Cem Mil e sobre a qual escreveu que todo mundo foi, menos o povo.

A história que guia “Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados” é simples, dividida em duas partes, mas que conquistou e chocou mesmo quem já estava familiarizado com as ousadias rodrigueanas e aqueles que viam graça em suas tiradas nas crônicas de costumes que assinava na imprensa: na obra Nelson profana a religião e sua moral cristã, zomba dos padrões de relacionamento sustentados pela mentira e enganação. Ou seja, basicamente ri de tudo o aquilo que não é permitido rir.

Publicada no extinto Última Hora, em formato de folhetim, o começo da trama se passa em 1940, em Vitória (ES), e retrata a vida de Engraçadinha dos doze aos dezoito anos. Em mais de 600 páginas, ele esbanja um domínio ora hilário, ora bizarro da língua portuguesa e, óbvio que por se tratar de um texto rodrigueano, sacadas sagazes e provocadoras pululam para as páginas e vão em direção aos olhos do leitor.

Engraçadinha, assim que conquistou a maioridade, noivou: desses casamentos arranjados, comuns àquele tempo e que ilustram o machismo da época. Ela ama, contudo, o primo Silvio, marido de sua prima e melhor amiga Letícia. Zózimo, coitado... A relação adúltera de Engraçadinha - nesse sentido uma versão à brasileira de Madame Bovary, de Gustave Flaubert - acaba numa desgraça que marcará sua vida para sempre e vai dar uma guinada no ritmo da narrativa, que mudará o foco do texto.

Aí está o ponto de reviravolta no enredo: na segunda parte, já com a protagonista na casa dos 30 anos, a verve cômica do narrador entra em cena. Ela se transforma numa mulher religiosa e carrega consigo um trauma pelo que ocorreu em sua juventude, reiniciando a vida ao lado de Zózimo, no subúrbio do Rio de Janeiro, especificamente na Zona Norte da capital fluminense. Mas, ao observar e lidar com o comportamento de sua filha Silene, encontra nela muito de si em sua juventude.

O jeito, o poder de sedução... Isso leva Engraçadinha, ou aqui seria adequado usar o prefixo ex antes?, a um confronto frente a frente com fantasmas de seu passado. Nelson mistura, nesta etapa da narrativa, personagens fictícios com pessoas reais, boa parte deles amigos do jornalista-escritor – na nova edição da HarperCollins as pessoas, lugares e situações reais são descritas em notas no final do volume. Estava previsto uma terceira parte, com a morte de Engraçadinha, mas deu por encerrado o livro.

A nova edição tem textos de apresentação assinados pela escritora Adriana Armony, estudiosa da obra de Nelson, e da cronista, atriz e documentarista Maria Ribeiro.

Em tempo: a editora informa que, para os próximos anos, está se preparando para publicar ainda outros grandes sucessos de Nelson Rodrigues, como o romance “O Casamento” – única obra escrita por Nelson para ser lançada em livro, por encomenda de Carlos Lacerda, mas que acabou por ser censurada em 1966, dois anos após o golpe dado pelos militares. Também, continua a HarperCollins, ganharam novas edições os folhetins que nos 1940 aumentaram as vendas de jornais no Rio de Janeiro.

“Meu Destino é Pecar”, que Nelson assina como Suzana Flag, e “A Mulher Que Amou Demais”, sob o pseudônimo de Myrna, são outras obras que estão programadas para serem relançadas. Além disso, a editora anunciou “Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo”, livro idealizado a partir de depoimentos e entrevistas do autor.

Com essas iniciativas, a obra vanguardista de Nelson Rodrigues ganha novo fôlego em meio à era do cancelamento. Devemos ler Nelson como um documento para compreender no que avançamos ou não enquanto sociedade.

Veja as obras de Nelson Rodrigues que vão ser relançadas

‘Asfalto Selvagem’

Mais que um nome ou apelido, Nelson Rodrigues fez de uma aparentemente pacata mãe de família - vivida por Alessandra Negrini e Claudia Raia na minissérie de TV e por Vera Viana e Maria Helena Dias no filme de 1964, com Jece Valadão - um marco da literatura brasileira. Um texto que expôs a alma humana em amores e pecados.

‘O Casamento’

Escrito por encomenda para Carlos Lacerda, 'O casamento' foi o único romance de Nelson. Publicado em 1966, alcançou sucesso em poucas semanas. O autor já se preparava para uma brilhante carreira nas livrarias quando foi tomado de surpresa pela notícia da morte de Mário Filho, seu irmão, poucos dias após o lançamento.

‘Meu Destino é Pecar’

Escrito sob pseudônimo de Suzana Flag,este romance de Nelson Rodrigues conta a história da bela Leninha, obrigada a se casar com o rude Paulo por causa das dívidas da família. Após a cerimônia, Leninha vai morar na fazenda do marido. A obra, como as demais do autor, foi publicada em jornal, como folhetim.

‘A Mulher Que Amou Demais’

"Myrna escreve" era o nome da coluna em que Nelson respondia a consultas sentimentais no Diário da Noite. A mulher que amou demais conta a história de Lúcia, que às vésperas do casamento se vê apaixonada por outro homem. O romance é um folhetim típico, com todo o arsenal de recursos para atrair e prender a atenção do leitor

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