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Feliz ano novo, Rubem Braga

Sem um tostão no bolso, um jovem advogado está de saco cheio da penumbra financeira e decide fechar o escritório que tem no centro do Rio de Janeiro. Foi o que fez o mestre do conto em estilo seco e coloquial, Rubem Fonseca, antes de criar aquilo que o crítico literário Antonio Candido chamou de “realismo feroz”. É essa linguagem precisa que marcou obras como “Feliz Ano Velho” (1975), “O Cobrador” (1979) e “Agosto” (1990).

Zé Rubem, como era chamado por amigos de décadas como os jornalistas Zuenir Ventura e Sérgio Augusto, não sabia que transformaria a literatura brasileira ao ingressar na Polícia do Rio de Janeiro. Entre 1953 e 1954, ele se aperfeiçoou nos Estados Unidos e cursou administração de empresas na New York University (NYU). Ao voltar para o Brasil, deu aulas na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Foi exonerado da polícia em 1958 e trabalhou como docente e relações públicas até se dedicar totalmente à literatura.

Nascido em Juiz de Fora (MG) em 1925, o escritor era filho de imigrantes portugueses e foi morar no Rio, então capital da República, ainda na infância. Seus pais eram bem de vida: a mãe jogava tênis e o pai tinha até motorista particular. No entanto, de uma hora para outra ficaram pobres, e o jovem Zé Rubem passou a ter contato com a sinuosidade das ruas do Rio e os problemas sociais da cidade. É a matéria-prima da qual partem os contos do clássico “A Arte de Andar Pelas Ruas do Rio de Janeiro”. 

O conto, de fato, era a arte por excelência de Zé Rubem. Nele, nos anos 1960 e 1970, abordou a crueldade de uma sociedade desigual, profundamente marcada pelo abismo que divide ricos e pobres: em “Os Prisioneiros” (1963) e “A Coleira do Cão” (1965), já havia a preocupação sobre os conflitos sociais e relações desumanas. Suas histórias, seja no conto ou romance, eram constituídas por prostitutas e cafetões, e a preferência por “palavras feias”, como palavrões, criavam uma atmosfera sufocante no leitor.

Mas, mesmo com uma biografia recheada de bons serviços prestados à nossa literatura, o escritor possui um episódio controverso. Ele trabalhou no Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipês). O objetivo do órgão, criado por Golbery do Couto e Silva, era produzir artigos para jornais e filmes de propaganda para assustar os conservadores. Fonseca permaneceu em silêncio sobre o assunto por muito tempo, mas num texto publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1994 detalhou sua experiência no Ipês. 

Ele dizia que a instituição era dividida em duas alas: uma ditatorial, que defendia a política do uso da força para conter a “ameaça comunista”, e a outra acreditava que a saída seria por meio da democracia. Zé Rubem afirmou, no artigo publicado na Folha, que fazia parte da segunda turma e explicou que cortara qualquer vínculo com o Ipês em 1964, ano em que os militares deram o golpe que implantou a ditadura no Brasil.

O curioso é que, já vivendo integralmente dos proventos advindos de sua literatura, Zé Rubem foi alvo dos censores da ditadura ao lançar “Feliz Ano Velho” (1975). A obra foi taxada de “pornográfica e contrária à moral e aos bons costumes”, sendo proibida, pelo governo militar, de circular no território nacional. Com a proibição, havia uma ordem para que todos os exemplares que estivessem nas livrarias brasileiras e na editora fossem apreendidos. Desenrolou-se, então, um imbróglio com a União, de anos.

Como se não bastasse, acusaram-no de fazer “apologia ao crime”. Políticos declararam publicamente que o escritor deveria ser preso por suas “atividades imorais, subversivas e criminosas”. Em 1979, o escritor peitou a censura com “O Cobrador”, obra construída a partir de uma linguagem mais “pesada” do que a de “Feliz Ano Velho”. É também considerado o melhor livro de contos do autor, além de ser citado como um poderoso instrumento para se entender as turbulências do Brasil atual.

Em 2021, o leitor deve esperar relançamentos das obras do autor sendo publicadas todos os meses, com novos projetos gráficos e textos no miolo. Títulos como “Agosto”, “Bufo & Spallanzani", “O Seminarista”, “Feliz Ano Velho” e “Amálgama”, vencedor do prêmio Jabuti de Contos e Crônicas, já estão disponíveis para o público nas livrarias goianienses e também à venda nas melhores casas do ramo na internet. Bem como “Calibre 22”, que acaba de sair pela Nova Fronteira, com nova capa e posfácio inédito.

Um ano depois do mestre do conto ter morrido, a revista Quatro Cinco Um, especializada na cobertura de livros, produziu um documentário auditivo sobre a importância de Rubem Fonseca para a literatura brasileira. Na obra, o ator Marcos Palmeira lê trechos de textos clássicos do autor, que são intercalados com depoimentos de escritores contemporâneos influenciados por Fonseca, como Xico Sá, Marçal de Aquino e Marcelo Rubens Paiva. A apresentação é do jornalista Paulo Werneck.

“Em Busca de Rubem Fonseca” explora as facetas mais diversas do escritor e disseca como ele produziu com rapidez até o fim da vida. É uma investigação sobre o universo cinéfilo, de ex-policial, recluso e erudito que podem ser vistas na própria obra do autor, se analisada minuciosamente, mas nos mostram a força de uma narrativa sobre a nossa violência cotidiana. José Rubem Fonseca é mestre.

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