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Documentário traça paralelo entre Brasil da ditadura e república dos evangélicos ao retratar Leila Diniz

A mulher brasileira jamais seria a mesma após a bombástica entrevista de Leila Diniz ao jornal O Pasquim. Com língua afiada e sem tempo para fazer concessões, Leila figura de toalha enrolada na cabeça, chocando a sociedade ao falar palavrões (que Paulo Francis, Jaguar, Millôr Fernandes, Tarso de Castro, Sérgio Augusto e Ziraldo substituíram por asteriscos) e demostra uma visão avançada para os padrões da época sobre sexo. “Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra”, disse à patota.

O ano era 1969. Clima instável, tempestade à vista. Médici, o mais sanguinário dos presidentes durante a ditadura, chegara à presidência para inaugurar o período que os historiadores chamam de “anos de chumbo” tamanha a quantidade de cadáveres empilhados nos porões do regime fardado. Porém, para dizer que não falei das flores, no mês seguinte à posse do general linha-dura, teve Leila em O Pasquim, obrigado. Depois daquele 20 de novembro, o jornalismo brasileiro nunca mais se recuperaria.

Muito menos a cineasta Ana Maria Magalhães, que homenageia a atriz, sua amiga, no documentário “Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar”, filme exibido no próximo dia 7 na abertura do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Como se fosse uma carta, o longa recorda a postura corajosa de Leila, à frente de seu tempo, além da persona cativante e atriz talentosa que atuou na comédia “Todas as Mulheres do Mundo”, de Domingos de Oliveira, e no drama “Fome de Amor”, de Nelson Pereira dos Santos.

O longa, concebido em um primeiro momento em U-Matic, possui produção, roteiro e direção assinados por Ana Maria e contou com apoio do Instituto Itaú Cultural. As entrevistas e originais, de 1982, ganham a companhia de gravações novas, com imagens tratadas, digitalizadas e remasterizadas. Finalizado em HDTV, com alta qualidade, o filme analisa a importância de Leila para a cultura contemporânea, mostrando como ela se posicionou pela liberdade das mulheres durante os anos mais duros da ditadura.

Exemplo de cinema orgânico, traçando paralelo entre o Brasil fardado e a república neopentecostal de hoje, a memória de Leila é evocada por meio de depoimentos de amigas e amigos, ex-companheiros, trechos de filmes em que ela atuou, fotos e arquivo impresso. É uma narrativa costurada para quem não teve chance de a conhecer. Também serve como testemunho, cheio de saudade e boas lembranças, para quem gozou do privilégio de tê-la por perto em sua breve passagem entre nós, interrompida precocemente num desastre aéreo em 1971, aos 27 anos, na Índia.

O interessante, nas palavras de seu biógrafo, é que Leila estava sempre sem frase-feita, sem palavra de ordem, sem colocar o homem como inimigo das conquistas feministas - Foto: Divulgação

Leila teve um currículo preenchido por expressivas realizações artísticas, porém nada se compara à contribuição que deixou à história do comportamento feminino. Espontânea e alegre, adepta da máxima que é preciso se mover pelo prazer e liberdade, a atriz contribuiu para criar um novo papel à mulher na encaretada sociedade brasileira da ditadura, como demonstra o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos no perfil-biográfico de Leila Diniz lançado pela Companhia das Letras, em 2008.

O mais interessante, nas palavras de seu biógrafo, é que Leila estava sempre sem frase-feita, sem palavra de ordem, sem colocar o homem como inimigo das conquistas feministas. Após o bate-papo com a marachada branca de O Pasquim, falta de diversidade que seria problematizada hoje em dia até na revista Playboy, Leila apareceu grávida, com o barrigão de fora, na praia, transformando a moda e os modos. No teatro, onde também brilhou em cena, trajava-se de vedete, maiô cheio de plumas.

Deixada de lado pelas feministas, vista como alienada pela esquerda da guerrilha urbana e indecente pelas reacionárias, Leila foi colocada na geladeira pela Globo. Segundo a escritora Janete Clair, não haveria nos folhetins nenhum papel de puta e, portanto, a atriz não tinha nada que ver no plim-plim. Desempregada, topou participar de um festival de cinema na Austrália. Sua trajetória terminou na volta para a casa, deixando uma filha de sete meses e um Brasil (não aquele encaretado) em luto.

Leila Diniz, a moça segunda a qual Carlos Drummond de Andrade definiu como “sem discurso nem requerimento soltou as mulheres de vinte anos presas aos troncos de uma especial escravidão”, jamais será aos olhos da história a “mulherzinha de Domingos de Oliveira”. O mais fascinante nela, até hoje, é que nunca se intimidou, passou por cima do machismo (vide a entrevista ao Pasquim) e se estabeleceu como referência quando o assunto é liberdade para fazer o que bem entender.

“Cinco décadas depois, em um Brasil governado pela extrema direita em que avança o fanatismo evangélico, o que resta de Leila? Leila Diniz se mantém de extraordinária atualidade”, afirma o texto que fecha “Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar”. Linda, inteligente e transgressora, Leila Diniz caiu nas graças do público que sabia a força daquilo que ela fazia, ao mesmo tempo em que provocou a fúria de defensores da moral e dos bons costumes, sobretudo quando decidiu posar para uma revista grávida.

Nesse sentido, Leila segue uma personalidade cuja existência foi revolucionária. “Já Que Ninguém Me Tira Pra Dançar”, de Ana Maria Magalhães, não poderia ter vindo numa hora mais propícia: o abismo que separa homens e mulheres e o feminicídio tornam a obra um instrumento para mostrar que não há problema algum em exibir a gravidez nas areias de Ipanema. O problema mesmo é o machismo e a violência dele derivada. “Na minha cama, dorme algumas noites e mais nada”, declarou no emblemático bate-papo com a turma de O Pasquim. Leila Diniz, obrigado.

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